sábado, 23 de abril de 2011

Ser ou não ser literatura: eis aqui a não questão

Publicado no A tarde

Fazer os jovens lerem pode não ser tarefa fácil; dizem que fazê-los ler, então, escritores antigos é missão quase impossível. Isso parece não ser verdade quando se vê o sucesso da escritora Paula Mastroberti na série “Reversões”, que tem a “Angústia de Fausto”, “Heroísmo de Quixote (premiado em segundo lugar com o Jabuti de 2006 na categoria Juvenil), “Retorno de Ulisses” e agora “Loucura de Hamlet”, que encerra a série.
O truque é velho: adaptar para os dias de hoje a história de “muitos ontens atrás”. Mas as ferramentas e a engenharia visual são novíssimas: encarar as páginas, a capa, o pé de página, as ilustrações como parte do “produto”; dar a ele ainda mais “concretude” com cenas de filmes, jogos e o que mais der cara, cor e textura ao texto literário. Mais diretamente dizendo, em alguns casos já não é o texto o que importa, mas todas essas midiáticas atrações. O que, no final, sobra de Shakespeare ali? Os jovens estariam lendo Shakespeare através de Paula Mastroberti? Deixemos disso agora. O que está em jogo é que um dos textos shakespeareanos mais estudados por filósofos, psicoanalistas, lingüistas, historiadores, retóricos, - “Hamlet” - vira um produto acessível aos que não costumam ler.
“Loucura de Hamlet” é um livro que mantém o argumento do texto de Shakespeare, mas as adaptações são para a situação atual imediata. O livro é trabalhado visualmente para encher de vontade os olhos habituados ao movimento, ao fragmento, ao império do visual. As colagens e desenhos compõem as personagens e os diálogos como se fossem uma obra híbrida, quadrinhos e livro.
Os textos são “montados” com recortes e simulação de diário e de arquivo de computador; tem notas de rodapé como parte do texto, explicando para o leitor as elipses mais “herméticas”, e “O retorno de Jedi” entra como filme, como jogo e como “personagem” da aventura. “Jedi” é o fantasma do Hamlet-Tomás, aquele que chega como seu pai pedindo vingança de sua morte.
Da “história” fica tanto que quase temos um certo incômodo e ímpeto de defender para o fantasma de William Shakespeare os direitos autorais do bem sucedido empreendimento. Alguns nomes são mantidos, Ofélia, Horácio, Polônio, Gertrudes, etc.
Dois irmãos gêmeos crescem numa favela; um se dedica aos estudos como tábua de salvação do ambiente violento, o outro se deixa seduzir pelo mundo do crime e vira um traficante poderoso. O irmão bandido, Antônio, casa com Gertrudes e tem um filho, Tomás.
A autora mantém personagens e outras são acrescentadas para dar maior veracidade à história - em primeira pessoa - narrada por uma personagem que nada tem a ver com a tragédia, sendo quase que assumidamente a figura do mediador.
Cláudio já não mora na favela quando seu irmão é assassinado. Casa-se com a cunhada e leva mãe e filho para um condomínio de classe média. Político “popular”, Cláudio conta com seu parceiro, Polônio, pai de Ofélia e Laertes, que é assassinado por engano no lugar de Cláudio.
Tomás, apaixonado por Ofélia, desiste dela ao vê-la envolver-se com drogas; finge-se de louco e planeja a morte do tio para vingar-se do pai, que julga ter sido assassinado por Cláudio, e mantém uma relação ambígua com a mãe, que parece cúmplice de Cláudio. Como na versão de Shakespeare, nunca fica claro o envolvimento do casal com o crime, embora se possa entrar no delírio do filho.
Ofélia se envolve com drogas e prostituição, suicida-se na piscina depois de matar o irmão a facadas quando se recupera de uma overdose. Tomás acaba se debatendo com a culpa, no limiar de sua loucura – fingida ou não. A disputa entre o amor e o ódio é chama inextinguível.
A tragédia toda é convincente nos dias atuais – já o cinema fez isso algumas vezes com vários dos textos de Shakespeare, de Romeu e Julieta a Otelo passando por Hamlet - e há os cruzamentos e confusão de estado mental de Tomás (evidenciado por interferência do “mediador”) mantido de forma inteligente.
Entretanto, sem nem perder tempo tentando dizer se o livro é literatura ou produto de consumo, uma coisa é certa: os jovens não estarão lendo Shakespeare – se bem que quem sabe o quanto de Mastroberti estariam lendo eles.
O fato é que Shakespeare é muito mais do que um argumento. Shakespeare é a linguagem, são as metáforas, são os ricos solilóquios das personagens, é estrutura dramática aristotélica; Shakespeare é Shakespeare por algo muito além de colagens e artifícios visuais, é sedução na junção magnífíca e sedutora de linguagem, ritmo, conteúdo, estilo; são mistérios escondidos dentro do texto. Os jovens vão ler – e vão gostar de como essa história é contada - mas, deixemos claro, nada disso vai suprimir a magistral aventura outra, a de ler e degustar um texto de Shakespeare com o sabor daquele.
É, portanto, carta fora do baralho entrar na discussão de ser ou não literatura; “ser ou não ser” está fora de questão. O que está ali é uma outra coisa. Esta, sem medo algum de dizer, fruto de nosso tempo e das nossas tecnologias. Cabe a cada um decidir como se satisfaz. Eu, certamente, prefiro dar a Shakespeare o que é de Shakespeare.

Paula Mastroberti/Rocco/136p./R$ 41, 50.

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