terça-feira, 29 de dezembro de 2009
segunda-feira, 21 de dezembro de 2009
Os labirintos da maçonaria
“Naquela noite, enquanto Mal’akh descia a rampa, os sigilos e sinais tatuados em sua carne pareciam ganhar vida sob o brilho celeste da iluminação do porão. Antes de adentrar a névoa azulada, ele passou por várias portas fechadas e encaminhou-se diretamente para o maior dos cômodos, no final do corredor.”
Perante a quantidade de críticas impiedosas que o novo best-seller de Dan Brown, O símbolo perdido, vem recebendo pelo mundo afora, é difícil ser original e dizer algo que não tenha sido dito. É que, no fim das contas, não é preciso grande erudição para perceber a falta de qualidades literárias numa obra desenhada para, no máximo, entreter e, sobretudo, para vender. Trata-se, em realidade, de uma repetição nada imaginativa da mesma fórmula usada em O Código Da Vinci: uma conspiração tramada por um vilão e a correria do protagonista Langdon para desvendar o mistério oculto, pseudo-ciência barata, uma dose de polêmica religiosa (bem mais moderada, no caso de O símbolo perdido), infinidade de clichês e lugares comuns disfarçados de revelações filosóficas e um suspense fácil que é a chave do page turner. O resultado é, como disse o crítico espanhol Rodrigo Fresán, “um folhetim cruzado com guia de turismo e a reciclagem de inverossímeis teorias já enunciadas até o cansaço”.
Entretanto, imunes à crítica e demais advertências (um jornal católico italiano esbraveja por não ser o romance suficientemente hostil à maçonaria, a Sociedade Maçônica o critica por conter erros e mistificações, amantes de Washington lamentam a imagem criada da cidade), leitores de todo o mundo correm às livrarias, atingidos por esse fenômeno inexplicável da indústria do best-seller. Em dois dias, mais de um milhão de cópias foram vendidas nos Estados Unidos, Canadá e no Reino Unido. Segundo informações divulgadas pela Doubleday, a primeira edição é de 6,5 milhões (a maior edição na história da Random House). O precedente de O Código de Da Vinci (mais de 81 milhões de livros vendidos desde o seu lançamento em 2003 e um filme homônimo protagonizado por Tom Hanks que ganhou mais de 758 milhões de dólares), somado à expectativa de seis anos de espera, garante a este novo romance vendas milionárias.
Mas o fenômeno não é tão inexplicável assim. A estrutura de folhetim, usando aqui a associação feita pela pesquisadora Nancy Vieira, com elementos de romance policial e os mistérios que envolvem religião, é por demais atraente. Leitores se sentem verdadeiros detetives e, ao mesmo tempo, sentem que vão ser especiais ao descobrirem o mistério religioso que as tramas de Dan Brown oferecem. A atração por isso chega a ser quase inevitável e não foram poucos os que, mesmo se dizendo críticos e amantes de Literatura, submeteram-se compulsivamente à leitura do Código Da Vinci. Esta que vos escreve agora passou também por isso. Contudo, a curiosidade se esgota logo diante das fórmulas repetitivas e depois nada fica dessas personagens, ao contrário de outros livros, como “O nome da rosa”.
Se a fórmula da construção do romance é a mesma utilizada no Código, a temática e o local da história são diferentes. Em vez da Igreja Católica e a Opus Dei, temos a maçonaria; em vez de Paris, temos Washington. O vilão, neste caso, chama-se Mal’akh, um eunuco musculoso e tatuado dos pés a cabeça, que seqüestra o amigo e mentor Peter Salomon, numa sequência de ações misteriosas, envolvidas em tensões e quebra-cabeças. Nem ele nem as outras personagens são desenvolvidas para além da superfície, e suas ações não fazem necessariamente muito sentido, mas isso não deixa preocupado o autor. A única coisa que parece lhe importar é criar os cenários e as situações necessárias para uma sucessão vertiginosa de acontecimentos, mesmo que inverossímeis.
A fascinação geral pelo mistério e pelo oculto é explorada nos segredos da maçonaria (sem que, evidentemente, o autor tenha tido acesso a eles), e o gosto pelo esoterismo e o além é satisfeito por uma mistura bizarra de suposta ciência e fórmulas(inhas) fáceis do “poder da mente sobre a matéria”, chamada “ciência noética”. E o pior: o autor tenta nos dizer que isso tudo “é verdade”… e podemos entrever um sorrisinho cínico e nada elogioso para a nossa inteligência.
Com essas matérias primas está posta a andar a engrenagem da máquina de fazer dinheiro. Milhões de livros vendidos e muitos mais por vender, traduções às pressas a dezenas de línguas, um filme em vias de criação por Columbia Pictures, “Dan Brown tours” aos locais em Washington onde se desenvolve a história, videogames e toda a enxurrada de subprodutos imagináveis. It’s show business.
O Símbolo perdido/ Dan Brown/Sextante Ficção/512 p/R$39,90
Publicado no caderno 2 do Jornal A tarde em 19/12/2009
sexta-feira, 18 de dezembro de 2009
A aldeia de Amós Oz
Milena Britto – Professora do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia
As histórias em “Cenas da vida na aldeia”, de Amós Oz, deixam-nos suspensos de perplexidade, com uma sensação de angústia nebulosa, de perda e de incompletude. Sem falar de nenhum evento político envolvendo Israel e Palestina, Amós consegue trazer ao leitor uma atmosfera ríspida e incitá-lo no desejo de adentrar-se pelos arquétipos humanos que levam uma vida simples, aparentemente, mas com um peso não dito impossível de se ignorar. Tel Ilan, aldeia imaginária nas montanhas de Menashé, em Israel, é o cenário onde todas as histórias (menos a última) se desenvolvem. Aldeia antiga “que já completou os cem anos”, repete o narrador insistentemente, chamando a atenção para a relação do tempo com a geografia, num paradoxal sentimento do que é considerado velho, pois cem anos é absolutamente nada para uma aldeia.
O romance é composto de histórias que, lidas individualmente, são contos inteiramente independentes. As personagens de quem trata cada “conto” reaparecem em outros capítulos, mas apenas como figurantes, como pano de fundo para outras histórias. Multiplicidade de experiências individuais (cenas de vida) que compõem um panorama mais amplo que, lido como um todo, adquire uma unidade e um sentido distinto. Essa estrutura de capítulos independentes, o recurso de personagens reaparecerem e a mesma cidade ser cenário de todas as narrativas é, sem dúvida, uma referência ao escritor norte americano Sherwood Anderson, assumidamente uma influência para Oz.
O fio condutor que une as histórias é a perda (de pessoas, de passados, de liberdade). O sobrinho que a doutora Steiner espera não chega no ônibus onde deveria estar. O presidente do conselho procura sua mulher, que deixou um bilhete dizendo que ele não deve se preocupar e desaparece de casa. O ex-deputado Pessach Kedem briga, inconformado, com um passado traído e um presente desprovido de sonhos. A própria aldeia parece estar se perdendo, os seus habitantes se tornando apenas curiosidades exóticas de um passado anacrônico. Enquanto o turismo invade a aldeia, as casas transformam-se em pousadas, abrem-se boutiques e restaurantes. O passado parece estar se desmoronando, como se algo estivesse sendo cavado sob os alicerces, como na casa de Pessach Kedem, onde todas as noites se escuta o trabalho de gente misteriosa cavando sob o porão.
Há, neste sentimento de perda, uma dose de melancolia, de saudade de tempos outros. Mas há, também, uma sensação de que, nesse passado, escondem-se fantasmas, coisas que amedrontam, pequenos e grandes crimes, transgressões irresolutas.
A perda, porém, não leva ao fatalismo, à imobilidade ou ao desespero, mas a uma busca contínua. Trata-se de buscas inconclusas, do mesmo jeito que as próprias histórias são inconclusas. Essa falta de fechamento, esse suspense no qual o autor nos deixa uma e outra vez, faz-nos pensar que nem tudo foi dito. O mundo que Amós Oz nos mostra é sombrio, mas não desprovido de esperança.
Cenas da vida na aldeia pode ser lido como uma alegoria do Estado de Israel (embora o autor não goste disso), ou como um comentário sobre a angústia dos nossos tempos, ou até como uma reflexão sobre a idade e o processo de envelhecer. Certamente o conto (ou capítulo) “Os que cavam” contém comentários muito agudos sobre o Israel e as relações entre os judeus e os árabes. Quando Pessach Kedem questiona Adel, o jovem árabe que trabalha na sua casa, qual é a diferença entre israelenses e palestinos, Adel responde que ambos são infelizes, porém “Nossa infelicidade é por nossa causa e também por causa de vocês. Mas a infelicidade de vocês vem da alma.” E quando Pessach Kedem, desconfiado, diz à sua filha que Adel não gosta deles, ele acrescenta: “E por que gostaria de nós? Eu também não gosto de nós. Simplesmente não há do que gostar.”
Entretanto, qualquer interpretação redutiva faz violência à obra de Amós Oz. O romance é isso tudo (comentário político, reflexão existencial), mas é muito mais. O romance não é uma alegoria; é um olhar à complexidade da alma humana, retratada nas imagens e, sobretudo, nos silêncios destas cenas da vida na aldeia.
Cenas da vida na aldeia/Amós Oz/Trad. Paulo Geiger/Companhia das Letras/184 p./ 38 reais
Publicado em A tarde, caderno 2+ em 12/12/2009
segunda-feira, 7 de dezembro de 2009
The Soloist (O solista) - 2009
Eu fui sozinha e, quem sabe por isso mesmo, gostei muito, me emocionei. Dois filmes com a forte presença da música... Dessa vez, eram cenários já muito conhecidos para mim. Posso quase dizer que já vi o carrinho do Nathanael e já convivi com alguns Steves. De todo modo, me impressionaram as cenas de Los Angeles.
De profundis
Ontem fui com dois amigos, o C e a J, ver o filme "De profundis" de Miguelanxo Prado. Gostei tanto que resolvi, então, postar por aqui a resenha de uma outra amiga porque acho que toca nas coisas legais e é bem direta, além de bem escrita e menos passional do que eu teria sido.
Uma viagem ao som da música
Silvana Barretto Rezende
Uma busca rápida no google nos indica que De Profundis é o título de uma obra de Oscar Wilde, escrita na cadeia para um amante. Mas, De Profundis também é um filme contemporâneo de animação, ambientado no fundo do oceano e que em nada se refere à obra escrita por Wilde há mais de 100 anos. A começar pela falta de palavras no filme, não há vozes nem discursos, a trilha sonora é uma mistura de sons da natureza com uma música clássica, calma e bem marcada com os acontecimentos da história e sentimento das personagens. O diretor e ilustrador espanhol Miguelanxo Prado coleciona diversas publicações em revistas em quadrinhos e livros com histórias também assinadas por ele, além de ter desenhado para Holywood no filme “Men in Black”. O traço de Miguelanxo é característico de quadrinhos e funciona muito bem na animação já que são disformes e não lineares. Para o filme o ilustrador pintou 10 mil quadros posteriormente animados em computador. Façanha maior conseguiu o pintor e animador russo Alexander Petrov, vencedor do Oscar de melhor curta de animação em 2000 com “O Velho e o Mar” uma adaptação da obra de Ernest Hemingway. Petrov pintou com as mãos 29 mil vidros, seu suporte de pintura para animação, também para contar uma história de pescador e muita água, elemento difícil de representar e que em De Profundis é impecável. Na cena inicial, o grande oceano em movimento combinado com a câmera virtual, causa sensação de uma realidade de fantasia onde fecha-se os olhos para tentar ver melhor, se é verdade. O filme conta a história de um pintor que viaja com um grupo de pescadores e reproduz os peixes de cores fortes e formas estranhas. Durante uma tempestade o barco é engolido por uma onda gigante que os levam ao fundo do oceano. Numa ilha, na entrada de uma casa clássica européia, a companheira do pintor toca violoncelo enquanto assiste a um espetáculo de golfinhos. No profundo das águas o pintor flutua e se impressiona com a beleza do ambiente onde se surpreende a cada segundo. A subjetividade é bastante presente no filme, o que propõe uma relação de troca com quem assiste. A magia por vezes é desfeita com lapsos na técnica de animação das expressões das personagens e na ingenuidade de algumas cenas. Porém, propor uma hora e vinte minutos de desenhos em movimento acompanhado de música clássica não é desafio pequeno, conseguir a distribuição e projeção com público, um sonho realizado. De Profundis é um presente para todos aqueles que querem fugir de universos fantastigóricos e mergulhar em formas, cores e música suaves, com paisagens que relaxam e causam boa sensação. Mesmo com a técnica nos cutucando todo o tempo a animação ainda tem o poder de abstrair e fazer sonhar.
......
Ficha Técnica:
DE PROFUNDIS
de Miguelanxo Prado, Espanha/Portugal, 2007, 1h20, 10 anos
www.saladearte.art.br
sábado, 5 de dezembro de 2009
Un déjeuner avec Picasso: A literatura nada rosa das mulheres
Milena Britto- Professora do Instituto de Letras da UFBA
As particularidades de “A autobiografia de Alice B. Toklas”, de Gertrude Stein, são tantas que continuam rendendo leituras apaixonadas, pesquisas e estudos sobre a autora norteamericana. Comprovando isso, a edição que acaba de sair pela Cosac Naify, da coleção Mulheres Modernistas, é bela, luxuosa, com fotos de um dos casais lésbicos mais famosos da história literária, com posfácio de Silviano Santiago e sugestões de leitura. Uma reedição caprichada que faz jus ao empreendimento dessa autora do final do século XIX que desafiou até o fazer literário.
A primeira das curiosidades está no título da obra: o nome da autora está na primeira linha, contrastando com a proposta de ser a autobiografia de uma outra pessoa. A contradição dos dois nomes femininos vão se projetar num impossível jogo de espelhos: o gênero autobiografia, como reflexo de um espelho, exige que o nome da autora e da autobiografada coincidam, mas não é assim neste caso. Gertrude Stein e Alice B. Toklas fingem ser o “mesmo” sujeito na capa, rompendo um contrato de fidelidade do gênero e desafiando os leitores que tomam como verdade a palavra “autobiografia”.
O que Gertrude faz é pôr em questão a possibilidade de representação da história de uma vida em primeira pessoa. A autora se antecipa em mais da metade de um século às teorias mais inovadoras sobre o gênero autobiográfico que, na pós-modernidade, a crítica e a filosofia debatem dentro dos paradigmas da “desconstrução”. A ficção, a memória, a escrita de si, a reivenção do sujeito vão estar presentes na prosa fácil de Stein.
Além de tudo, O livro traz o panorama de trinta anos da vida vanguardista francesa, especificamente, revela-nos um efervescente e colorido quadro do ir e vir parisiense, contando-nos detalhes da vida de Picasso, Cézanne e outros artistas que cruzaram os portões da casa de número 27 da Rue de Fleurus. A Primeira Guerra também é tema da “vida” das duas mulheres e marca, no livro, a mudança de foco, que deixa de ser apenas o cenário artístico.
Por meio de uma escrita que desafia, por sua vez, os cânones narrativos, anulando o eixo temporal e convertendo em simultâneo e visual o espaço da memória, podemos ver, de 1903 a 1933, Alice e Gertrude tomando café com Picasso, jantando com Matisse, falando de chapéus com Marcelle Braque. Mas não é tudo, a autora faz dessa obra o caminho para se reinscrever na literatura, conforme o que diz Silviano Santiago no posfácio da nova edição brasileira: “A obra está comprometida com o desafogo da notável escritora que, tendo se exercitado na forma de narrar que inventara, não era compreendida.”
Contudo, a despeito de tantos aspectos culturais, artísticos e literários que fazem da obra o clássico que é, ainda nos sobra vislumbrar detalhes da vida desse famoso casal lésbico: Gertrude, de sua própria pena, se deixa ver com uma boa dose de egocentrismo, se achando “gênio” e assim se autodenominando, e ainda deixando-nos uma Alice que representa, dentro dos aspectos heteronormativos, o estereótipo feminino: cozinhava e fazia sala com as demais “esposas”.
G. Stein a autobiografia de Alice B. Toklas/autor: Gertrude Stein/ Cosac Naify/285 p./ 49 reais.
Publicado no A tarde, caderno 2+ em 05/12/2009
segunda-feira, 30 de novembro de 2009
sábado, 28 de novembro de 2009
Tulipas que brotam na guerra
"O oficial chamado Gyurka então olhou para minha mãe, balançou a cabeça, depois virou para mim e disse está bem, iriam embora, mas apenas porque ele via que nós gostávamos de flores, e quem gosta de flores não pode ser má pessoa.(...) O major também saiu, e minha mãe, então, quis bater a porta atrás dele, mas o major de repente se voltou na soleira, pôs o pé na porta para que minha mãe não pudesse fechá-la e disse, gentil, calmo, que ela ainda iria se arrepender daquilo."
Seria possível um relato mais verdadeiro de uma situação de violência e opressão do que o de um garoto de 11 anos? Não parece, depois de lermos “O rei branco”, segundo romance do escritor György Dragomán, nascido na Transilvânia. O narrador é Dzsáta, filho de um opositor ao regime político comunista, em um país do leste europeu, levado, num dia de domingo, para um campo de trabalhos forçados. E todos os dias viram domingos tristes enquanto Dzsáta aguarda, com esperança e uma fé cega, o retorno de seu pai. O romance possui traços autobiográficos, já que György e sua família deixaram o país em condições políticas igualmente tensas, embora o autor deixe claro que não passou pelas mesmas experiências que Dzsáta.
Sob o regime totalitário, os adultos são “monstros” corrompidos pelo sistema opressor e parecem querer a destruição de seus filhos, crianças sem futuro num país sem liberdade. Os professores, os adultos e os velhos vão assumindo a cara do “pai”, o Regime, e parecem reproduzir com prazer sádico as atrocidades sobre a infância que os sacode com sua indefensibilidade. O romance é construído com capítulos curtos, num estilo solto e às vezes desordenado, acompanhando a fluidez do pensamento infantil do narrador. Como se fossem para serem guardadas como memórias, as histórias vão girando em torno de pequenos detalhes, objetos que sobrevivem ao fim dos episódios como lembranças a serem colecionadas em gavetas. Bolas de futebol, robôs de plástico, tulipas, cadernos: rastros de meninos passando pela vida.
Terno (por conta de um narrador sensível) apesar de tanta dureza, o relato nos leva a testemunhar, em meio a um ambiente obscuro com a presença materializada do medo, o despertar da adolescência de Dzsáta. Somos cúmplices da sua primeira paixão, da descoberta do corpo feminino num rolo de filme escondido num depósito de cinema, das suas aventuras pelos campos vigiados, do roubo das tulipas, de suas mentiras para escapar dos castigos dos professores, de sua desesperada busca pelo pai e cumplicidade com a mãe. Somos também obrigados a enxergar o quão cruéis podem ser homens e meninos quando uma ditadura se instaura consumindo a liberdade que alimenta o espírito, a arte que alimenta os sonhos, a comida que alimenta o corpo.
Para chegar às questões políticas, o autor deixa livre a voz do narrador, sem tentativas de censura ou proteção à infância, mas acaba caindo em obviedades dicotômicas, apesar de explicitar a violência – física e psicológica – do sistema político repressor (No romance, todas as personagens comunistas são cruéis. Fácil demais para um escritor talentoso). O pai de Dzsáta desapareceu, seu avô, homem importante do regime comunista, consome-se de culpa por não falar com o filho traidor do regime, ignorando os apelos da nora para ajudar a encontrá-lo e trazê-lo de volta. Na escola, o garoto amarga a sua condição ambígua: filho de um “desertor” e neto de um importante nome daquele regime. O intervalo de espera pelo pai é preenchido pela descoberta das verdades do mundo dos adultos. O menino está crescendo e, enquanto isso, experimenta o que de lúdico pode haver num país sem liberdade.
Não é que o autor idealize a inocência da infância, mas os seres, ainda que pequenos, são sínteses do que há no mundo, e assim nos são apresentados, com a força de serem crianças em suas pequenas e grandes crueldades, pequenos e doces sonhos. E isso no meio de uma guerra que não pediram e não entendem. Para além de ser um relato sobre a infância, é uma verdadeira incursão que decifra a Europa que poucos prestam atenção, aquela Europa do leste que marca ou marcou a memória ocidental ora com regimes comunistas, ora com o vazio de escombros de mudança de regime.
György Dragomán, apesar de jovem escritor, guarda dois romances premiados, uma literatura sem pretensão, vinda de um autor paciente e detalhista. Dragomán, que traduziu Joyce e Beckett para o húngaro, parece ter levado para a sua literatura essa condição de tradutor, que verte para outra língua toda a complexidade literária de seus autores preferidos, só que, no romance, traduzindo, pelo olhar de Dzsáta, os horrores de uma guerra na qual a condição de ser humano é equivalente a de poder ser menino e de acreditar na vida, na volta do pai, num jogo de bola e num jardim de tulipas.
O Rei branco/György Dragomán/Intrínseca/255 p./38 reais
Publicado no A tarde - caderno 2+ em 27/11/2009
segunda-feira, 23 de novembro de 2009
sábado, 14 de novembro de 2009
Memórias póstumas do gato Ravic
“Antonio Martiniano é minha caixa-preta. Abram-no, nas páginas a seguir, e decifrar-me-ão.”
É o que escreve o gato Ravic, na forma de epígrafe, para nos incitar à leitura do seu romance-memórias-biografia enviesada. O gato Ravic está morto, escreve-nos no momento em que se mistura “à terra seca do quintal”. E o que escreve é não apenas as memórias póstumas da sua vida (e morte), mas, sobretudo, a biografia do seu dono-amigo Antonio Martiniano, jornalista desempregado e escritor frustrado, náufrago de uma perene crise econômica e existencial.
Um romance narrado post mortem por um gato filósofo e ilustre, amante de Turguêniev, Shakespeare e Cervantes, das coisas finas da vida e dos sofás e almofadas, que se autodenomina “estóico” e que, com seus “olhinhos mais-verdes-que-a-mais-esmeralda-das-esmeraldas”, observa aguçadamente as vicissitudes da vida humana e as comenta com língua afiada e sem concessões.
Essa inovação narrativa não é sem precedentes na literatura. Temos, por exemplo, o clássico Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, publicado já em 1880. Há também o exemplo do/a narrador/a (também póstumo/a) de Cómo me hice monja, que, como o próprio autor, se chama Cesar Aira, mas que fala de si mesmo/a no feminino, como uma menina. Temos o também clássico Niebla, do espanhol Miguel de Unamuno, onde o atormentado narrador visita o autor e, durante a conversa, descobre que ele é apenas uma criação literária do próprio Unamuno. E, no sentido do narrador-animal, temos Eu sou um gato, de Natsume Soseki, um romance satírico sobre a sociedade japonesa no início do século XX, cujo narrador é um gato que fala com a linguagem rebuscada e formal da aristocracia, completamente inapropriada para um simples gato.
No caso de Um náufrago que ri, Rogério Menezes explica que a intenção de usar um gato como narrador é “colocar no mesmo diapasão a dramaticidade presente em escritores como Graciliano Ramos, Dostoiévski, Turguêniev, Balzac e Henry James e a fantasia desvairada dos desenhos animados de Walt Disney”. O gato Ravic, pelo fato de ser gato e estóico, tem a capacidade de olhar para o mundo com ironia crítica e humor. Através da observação, da escuta de diálogos e das conversas que o dono tem com o gato, Ravic documenta e expõe sistemas filosóficos, como a dualidade corpo/pessoa, categorias nas quais Antonio divide os seus relacionamentos eróticos e amorosos: os encontros rápidos, numerosos, freqüentes, de pênis e esfíncteres ávidos em boates e saunas e ruas da cidade, ou o amor-obsessão por “pessoas”, que inevitavelmente termina em relações fraternais e assexuadas.
Ravic está convencido (ao contrário do Candide de Voltaire) de que vivemos no pior dos mundos possíveis, de que somos apenas “vulneráveis criaturas errantes submetidas ao errático sopro de algum deus-invariavelmente-bêbado”. Porém, perante o desespero do seu dono-amigo Antonio Martiniano e suas meditações sobre o suicídio, ele conclui: “Os suicidas são criaturas muito apressadas. Por que correr atrás da morte, se é ela quem inexoravelmente nos persegue? Não precisamos fazer nada para morrermos — é simplesmente respirar, relaxar, aproveitar, e deixar o tempo passar.”
O gato Ravic — literato e pensador — liberta-se das amarras dos gêneros: escreve narrativas, trechos em forma de ensaio, diálogos quase cinematográficos, parênteses explicativos, numa fragmentação criativa sempre salpicada de ironia e bom humor, mesmo ao tratar de temas como o câncer e a AIDS, a morte, o desespero, o suicídio. Mas, se o romance nos surpreende pela constante subversão das fronteiras entre vida e morte, narrador e autor, realidade e ficção, ele ainda nos reserva a surpresa de um post scriptum post mortem depois da página final.
Publicado em versão editada no Jornal A tarde - caderno 2+, 14/11/2009
quarta-feira, 11 de novembro de 2009
Carpinejar lança livro com textos publicados no Twitter
Tangerina é uma fruta didática. Não há como errar a divisão do gomo. 12:58 PM jun 21st from web
O livro do gaúcho Fabrício Carpinejar assim começa. Mas como a barra de rolagem ficou esquecida lá, no computador que “poeta” com vida própria virtual, o leitor precisa agir sobre as páginas dos livros e passá-las uma a uma para chegar ao início, que na obra impressa ficou no final, na última página. Que como não deslizam, as páginas do livro, nos deixam encontrar, fixadas lá, na pág. 83, as máximas de cotidiano e vida que no twitter.com/carpinejar já viraram arquivos. Velhos. O livro “começa” em junho e termina depois de setembro. Nunca mais saberemos quando, a não ser que encontremos os arquivos do Twitter “vivos”.
A filosofia começa onde a poesia termina. O filósofo herda o quarto bagunçado do poeta. 4:44 PM Aug 12th from web
Carpinejar foi premiado por inventar com arte e muito sossego poesia; por desafiar a ordem dela, os versos dela, por até disfarçá-la, cuidadosamente, em coisas ordinárias do dia-a-dia. Agora, ele chega com um outro rompante de criatividade e retidão: os aforismos que retornam, de suas mãos, com tanto de novidade, rasuras, cuidado pela vida dele, do leitor e delas, das palavras que quase parece que estamos diante de um jogo. A novidade está em trazer para o Livro o Twitter, por dar ao Twitter algo “novo”: pensamentos ao invés de vagas fofocas ou cápsulas de informações, por deixar, Twitter e Livro, cada um com “a sua praia”. E, nisso tudo, por oferecer ao leitor essa espécie de cinco minutos de sabedoria e de prazer. Não, de tweets.
No amor, o dente deseja roçar como o lábio, o lábio morder como o dente. 4:58 PM Aug 10th from mobile web
A arte de escrever em máximas, em condesados pensamentos, é antiga. Muitos filósofos e escritores se utilizaram desse gênero, alguns dos quais o próprio autor se diz leitor: Pascal, Karl Kraus, Goethe, Millôr, Clarice, Veríssimo, Quintana e outros listados na apresentação do livro. Mas os de Carpinejar tem algo particular: não extrapola os 140 caracteres permitidos pelo Twitter.
O escritor transforma a falta em vaidade. Ele vai se vangloriar inclusive do bloqueio criativo e escrever que não está conseguindo escrever. 12:22 AM Aug 5th from web
Como que marcando com compasso e não relógio esse tempo de poesia que já se extingue no ontem, o autor subverte os suportes, o tempo, a prática, a matéria e a literatura. O livro termina pelo começo e começa pelo final, que não sabemos se é presente ou futuro ou fantasia. A primeira página começa, ou termina, ou quem sabe prenuncie:
Quem anota para não esquecer esquece que o livro tem memória fraca. 40 minutes ago from web
Esses “40 min ago” é o tempo de eu dizer que li, e é o que o livro, para não esquecer, vai lembrar de dizer daqui a cem anos, dando ao leitor, “forever”, essa sensação de pertencer ao dia. Mas porque imprimir a palavra? Quem sabe para provar que o “pensador-poeta” virtual de fato se experimentou, a si mesmo, e também, sabiamente, nos testa no desvendar dos dias do lado de cá. No livro, sem login, pode-se transpor os limites das palavras e recriá-las como conselheiras de vida. Pois, sim, nesse livro não temos bytes nem barra de rolamento, contudo qualquer coisa de futuro. No livro também não se faz necessário conectar por cabo, smartphone ou WiFi.É livro com papel e tinta preta. Mas as palavras que registram o tempo, em inglês, elas, sim, são do Twitter. E o λόγος , afinal, que nos faz homens, registra sentidos no Twitter e no livrinho. E, assim, poesia, pensamentos, aforismos, tweets. Acréscimos e novas formas de fazer mais do mesmo.
O Twitter é um torpedo que a gente manda a si mesmo. E vai respondendo. 10:59 PM Jun 22nd from web
Publicado no Jornal A Tarde - caderno 2+ 11/11/2009
quinta-feira, 5 de novembro de 2009
Kent Williams
Para Pam e Isa
Mais um artista norte-americano. Conhecido por suas ilustrações de quarinhos, mas reconhecido e apreciado também pelo seu trabalho de pintura, com passagens pelo cinema e fotografia, Kent tem se destacado no cenário contemporâneo. Seu estilo é facilmente reconhecido, as texturas e cores assombram pela potência. Seu domínio do traço e dos pincéis são visivelmente explorados por ele, que deu uma outra cara aos "retratos" no nosso tempo.
sábado, 31 de outubro de 2009
terça-feira, 27 de outubro de 2009
segunda-feira, 26 de outubro de 2009
O Artaud de Sterling Ruby
Sterling Ruby é um artista multidisciplinar. Nascido na Alemanha, foi criado nos EUA. Vive e trabalha em Los Angeles, na Califórnia. Em seu trabalho se pode encontrar cerâmica, pintura nas mais diversas técnicas e materiais, escultura, vídeo e fotografia. Um artista que desabrocha como um dos mais importantes e versáteis da nova geração norte-americana.
sábado, 24 de outubro de 2009
Ateu, Saramago volta a confrontar Deus em seu novo livro, Caim
José Saramago é ateu. O que tem, então, a dizer um ateu sobre Deus? Como em O Evangelho segundo Jesus Cristo, no recém-lançado Caim ele envereda-se por um mordaz e irônico romance-exegese da Bíblia. Se no Evangelho Saramago concentra-se numa crítica ao cristianismo, em Caim ele estende essa crítica às raízes comuns do judaísmo, do cristianismo e do islã. Em ambos romances, a conclusão é a mesma: “Que o nosso deus, o criador do céu e da terra, está rematadamente louco, salvo, afinal, que não se trate de loucura, mas de pura e simples maldade”. Mas seria impreciso dizer que o romance é apenas uma condenação de Deus. Afinal, que briga pode ter um ateu com um Deus que não acredita existir? Longe disso, o romance responde a uma pergunta muito mais relevante: Se fôssemos acreditar nas histórias da Bíblia, como seria esse Deus? A pergunta é não só pertinente, mas fundamental, na tentativa de compreender a civilização ocidental e os males dos nossos tempos, pois que nosso pensamento é inseparável da herança judaico-cristã.
Em Gênesis, no Antigo Testamento, Caim mata Abel por inveja, quando Deus se recusa a aceitar as oferendas de Caim, mas aceita as do irmão. Entretanto, na versão saramaguiana, Caim se rebela contra a culpa que lhe é dada; Deus é tão culpado quanto, diz ele, por tê-lo incitado ao crime: é o seu “autor intelectual”. É a partir da visão deste Caim rebelde, crítico, condenado à errância eterna, que vamos percorrer as mais diversas passagens do Antigo Testamento, descobrindo a cada passo um Deus arbitrário, vingativo, vaidoso e cruel.
Escrito com humor e ironia, com um domínio ímpar da língua portuguesa e mantendo o seu reconhecido estilo, o Caim de Saramago é a história da guerra entre um homem e Deus. No fundo, porém, mais do que uma sátira da Bíblia, o romance é uma crítica às interpretações que dela se tem feito e os seus efeitos na civilização ocidental. Em outras religiões, não existe a nítida separação entre o bem e o mal. Os deuses são, quando não amorais, simultaneamente bons e maus. Saramago, com afiada ironia, desvenda a falácia da representação judaico-cristã de um Deus que se supõe bom.
Ao mesmo tempo, a interpretação bíblica de Saramago é uma alegoria da realidade humana, e Deus, uma metáfora da corrupção do poder. Assim, seguindo a reflexão crítica que o autor vem fazendo sobre a realidade contemporânea em muitos dos seus romances, Caim pode ser lido como um convite a pensar esta realidade e as suas injustiças a partir de um olhar cuidadoso das nossas raízes ocidentais. O poder requer controle e obediência, castiga a insubordinação. Assim, Deus destrói Babel, pois os seus habitantes, ao desejarem chegar ao céu, desafiam a prerrogativa exclusiva de Deus. A pedido de Deus, Moisés ordena o fratricídio entre os judeus recém fugidos do Egito. O poder é vingativo e implacável, como demonstrado pelas inúmeras histórias de guerras genocidas de destruição e morte indiscriminada de homens, mulheres, crianças e velhos.
Esta releitura bíblica não é apenas uma reflexão teológica, mas uma atualíssima crítica da contemporaneidade. Não será por acaso que o lançamento de Caim coincide com as crescentes denúncias de crimes de guerra cometidos por Israel, na faixa de Gaza, no início deste ano, e com as recentes declarações do Primeiro Ministro Benjamin Netanyahu de que as investigações da ONU “estimulam o terror e ameaçam a paz”. E é inevitável perceber uma ressonância entre a violência e arbitrariedade do Deus bíblico e os horrores no Meio Oriente durante a presidência de George Bush nos EUA e que continuam com o atual presidente.
Nesse mundo desvairado comandado por esse Deus “louco ou malvado”, são justamente as personagens que, na “versão oficial” são pecadoras ou malditas, as que se redimem através da rebeldia. É o caso de Caim, evidentemente, mas também de Eva, que enfrenta e questiona as arbitrariedades de Deus. E é também o de Lilith, personagem mítica (mulher-demônio, sedutora e erótica, segundo mitologias mesopotâmicas e hebraicas; a primeira mulher de Adão, anterior a Eva, segundo tradições cabalísticas) que Saramago introduz, anacronicamente, na história, reivindicando-a como exemplo de poder feminino e de liberdade sexual. Esta releitura não deixa de apresentar certos problemas, pois a personagem desenvolve-se apenas no plano do erotismo, reproduzindo, assim, estereótipos sobre a mulher que em teoria estaria Saramago tentando desafiar. Entretanto, personagens obedientes e devotos, como Abraão, Moisés e Noé, são representados como fracos, inconscientes e indignos. A fé cega e a obediência ao poder arbitrário, parece dizer Saramago, são fontes dos males da humanidade. Caim nos devolve, com humor ferino, o amargor da dúvida e a acidez da culpa.
Publicado no Jornal A tarde 24/10/2009
quarta-feira, 21 de outubro de 2009
Quase anônimos, talentosos e minimalistas
Eu gosto de fuçar por trabalhos de artistas de várias idades e nacionalidades, e estou tentando tirar mais proveito da internet, já que passo tanto tempo por aqui pesquisando. Vou sempre para gente pouco conhecida, os quais começarei a postar por aqui... Nisso de fuçar aqui e fuçar ali, encontrei o trabalho de Davor Svetinovik, 20 anos. Delicadíssimo, simples, minimalista em traços, cores, mas com o detalhe certo em cada desenho, o trabalho de Davor encanta. Fica-se, diante dele, tentando descobrir e preencher as emoções que parecem estar à frente dos desenhos, mas ainda a se completarem como o próprio traço que não se finda... Natural de Mrkonjic, na Bosnia, imigrou para os Estados Unidos quando tinha 10 anos. Davor é estudante e trabalha na biblioteca da Western Washington University. Seus desenhos, segundo suas próprias palavras, são fincados na tentativa de entender o que está se passando na própria vida: "Eu tento fazer sutis referências para eventos e momentos particulares, mas ao mesmo tempo, devido à natureza do modo como eu lembro coisas, muitas delas parecem exageradas de alguma forma. Então, muito de meu trabalho existe no meio do caminho entre verdade e ficção." Assumidamente a inspiração de Davor vem de Nikola Tesla e Bill Callahan. E suas ferramentas de trabalho se resumem em: nanquim, aquarela, papel, pincéis e lápis. Agucemos o olhar para esses 20 anos que nos oferece tanto e nos promete mais...
sábado, 10 de outubro de 2009
Homens, Livros e Lobos
Milena Britto
Professora no ILUFBA e no IHAC
De Freud a Herman Hess, da Roma de Rômulo e Remo à Selva de Mogli, os lobos passeiam pelos tempos dos homens abocanhando espaços grandes de seus sonhos. O Livro dos Lobos é uma reação às certezas do homem distante dos espaços primitivos e seguro de seu cotidiano, com contos narrados com uma dose de realidade que vai se dissipando conforme o leitor e o narrador se aproximam do mesmo desejo: decifrar os mistérios da escrita. Os contos, reescritos pelo autor e relançados recentemente, estão envoltos em segredos e enigmas. Escritores cegos, bibliotecários surdos e mudos, lobos que visitam mosteiros, sonhos que viram realidade, incestos e pesadelos vão cercando o leitor e colocando-o num estado de vigília, quase duvidando do que lê enquanto passa a limpo suas próprias crenças e experiências. O impasse entre o real e a fantasia é a chave encontrada pelo autor para revelar uma certa “falta” que sente o homem moderno, o que se pode observar quando se lê os contos “A caminho do Poço Verde” e “Alguém dorme nas cavernas”, nos quais o tempo se alonga e as histórias parecem que não terão fim. O mistério que envolve as histórias representa também a dificuldade com as verdades absolutas e rápidas; é a dúvida às respostas prontas e em série da sociedade mecanizada e veloz, indício captado na leitura de “Os biógrafos de Albernaz”. A violência psicológica e física, o medo, a busca e a incerteza fazem parte do jogo literário a que se propôs o autor, cujo objetivo é questionar até que ponto o homem conhece a si mesmo e até que ponto se distingue de seus desejos e medos. O abandono das personagens às suas viagens oníricas e míticas é explorado com uma infinidade de referências que vão desde a literatura contemporânea às tradições religiosas. As metáforas usadas adquirem tom de profecia, numa linguagem fluída com algo de complexo, mas sem ser hermética. Em alguns dos contos, hesitamos entre o ritmo das lendas orais, as narrativas proféticas e o ruminar das personagens-narradoras consigo mesmas. O espaço onde ocorrem as ações é um campo simbólico mais do que físico, ora representado pela natureza ora pela fantasia, com poucas exceções, como no conto “A escola da noite”, onde uma favela é cenário de uma cena de violência física e psicológica, e no conto “A terceira vez que a viúva chorou”, que acontece quase todo na enfermaria de um hospital. O conto “Um certo tom de preto” desafia o leitor com a construção de personagens ‘duplicadas’, quem sabe se por elas mesmas, pelo narrador ou pelo próprio leitor diante da natureza incivilizada e perigosa do incesto. As narrativas “misteriosas”, quase fantásticas, de Rubens Figueiredo se completam quando se descobre que algumas das histórias de lobos que estão no conto “Alguém dorme” são, de fato, inspiradas no que se conta do lobo Guará, da serra da Caraça, em Minas Gerais, onde houve um incêndio no Mosteiro que há ali, tal qual no conto, e onde a Biblioteca é, assim como na narrativa, depositária de valiosos e raros exemplares. O Poço verde é também um lugar “real” e, dessa forma, o autor nos desafia a seguir suas pistas e encontrar, quem sabe, em uma caverna, o rosto petrificado da espeleóloga Raquel ou desenterrar os manuscritos escondidos de um homem-lobo, ou ainda encontrar Diana nas águas do Poço que deseja, obsessivamente, encontrar. Se há vacilo em seguir as pistas ‘reais’ deixadas por aí, por essas e outras personagens, fica-se a “literatura” do livro. D’O Livro dos Lobos.
O Livro dos Lobos/Rubens Figueiredo/Companhia das Letras/160 páginas/30 reais
Publicado no jornal A tarde, 10/10/2009
As vidas sem muros em ruas fortificadas
Milena Britto[1]
“Tá, rapaz, calma, você não agüenta nada, não é só porque eu estou enchendo seu saco que você vai fechar o livro! O que acontece é que nós somos todos uma bosta, eu, você, o mundo todo, e se você não entende isso, você não tá com nada.” Quem fala é Betinho, o narrador do romance A rainha do Cine Roma do mexicano-‘baiano’ Alejandro Reyes, finalista do prêmio Leya e publicado em Portugal pela Oficina do Livro. Ao longo do livro, Betinho, jovem morador das ruas de Salvador, interpela o leitor e o sacode do seu conforto, envolvendo-o diretamente nos dilemas éticos e existenciais, enquanto conta (com raiva, com ironia, com humor, com desespero, com ternura) a sua própria história e a de Maria Aparecida, também menina que vive na rua. A violência, o desamparo, o abuso sexual, a fome, as drogas, a prostituição, o desespero – e também o amor, a esperança e a dignidade – cobram vida nessas e noutras personagens das ruas, das favelas e do submundo da noite de uma cidade do Salvador que se transforma, ela própria, em personagem. Seria fácil dizer que o romance é “um retrato da realidade como ela é”: a denúncia de um mundo fraturado pela desigualdade e o desvendamento de um universo ignorado. Mas o próprio Betinho desmancha a noção de verdade e a própria capacidade de narrar a realidade alheia: “Sei lá se o que vou contar aqui é verdade, vai ver que não foi nada disso, vai ver que não sei coisa nenhuma e não deveria nem estar falando”. O questionamento é duplamente interessante se considerarmos que o autor (que se apropria da voz de Betinho para falar desse mundo), não só não é menino de rua: não é brasileiro e nem mesmo o português é sua língua materna. Assim, o autor desconstrói de antemão a tentação de uma leitura fácil como um romance de denúncia social ou de preocupação etnográfica, desafiando, desmanchando e repensando fronteiras com o fazer literário. O romance é, em muitos sentidos, um livro justamente sobre fronteiras. As fronteiras da linguagem (a escolha de um narrador de rua implica numa linguagem dura, colorida, cadenciosa, cheia de gíria e da inventividade popular). As fronteiras de gênero, onde a sexualidade se manifesta numa subversão constante das categorias estabelecidas (um ponto fundamental no romance é a exploração sensível da manifestação do desejo, da sexualidade e do amor fora dos padrões e a fluidez das categorias de gênero). As fronteiras raciais, sempre presentes por baixo da aparente malemolência da suposta democracia racial. E as fronteiras de classe. São estas últimas as que, no romance, se manifestam menos permeáveis, fraturas quase intransponíveis pelos personagens que, quando tentam atravessá-las, iniciam uma queda vertiginosa de decadência.
Título: A rainha do Cine Roma
Autor: Alejandro Reyes
Editora: Oficina do Livro
Páginas: 287
Preço: 13.50 euros
[1] Doutora em Literatura Brasileira e professora da UFBA.
Publicado no jornal A tarde, 26/09/2009
Da internet à livraria: páginas vermelhas de folhetim
Milena Britto[1]
Aqui no subúrbio, quente e abafado, esquecido e ignorado, nos fundos de um mercadinho cheirando a barata, não existe desconforto maior do que o carregamento de porcos atrasar e expectativa maior do que vê-los, todos, pendurados por ganchos no frigorífico.
Edgar Wilson, Erasmo Wagner, Alandelon. Com nomes como esses, as personagens do livro “Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos”, de Ana Paula Maia, vão esfolar vivos os que chegam desavisados. A ironia dos nomes soma-se ao humor ácido que circula nas páginas do livro. Sem filosofia, composições clássicas ou sujeitos glamorosos, os nomes ‘de batismo’ dessas criaturas convocam-nos ao centro de gravidade de uma vida urbana ou periférica sem retoques: o mundo sub para além das paredes brancas dos edifícios, das luzes e letreiros que iludem a quem queira. Ali, o lixo, a noite, os chiqueiros, as fossas, são os espaços por onde andam os personagens, não por acidente ou mero efeito de scene, mas eles próprios conformando o ambiente repudiado pelos sentidos. Quem não torce o nariz ao odor desafiador dos dejetos e dos carros de lixo? Realcemos isso com os tipos humanos que realizam as escavações, que coletam o lixo, matam porcos, ou que desentopem fossas. Todos os sentidos do leitor são invadidos na incursão naturalista e violenta da escritora por essas zonas soterradas, que imprime um traço particular às duas histórias narradas: O trabalho sujo dos outros e Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos. Além do pulp tarantinesco evidente, as personagens são duplamente castigadas: pela vida que levam e pelo “efeito” dessa vida sobre eles mesmos. Os seus corpos e as suas mentes estão afetados. A surdez pelo barulho da britadeira, o estado quase sonâmbulo dos que varam a noite recolhendo lixo, o espetáculo da violência canina, o surreal aparecimento de um bode, o cheiro constante e irretocável dos dejetos. Essas visões, aparições e doenças interceptam as histórias e as deixam com ruídos, manchadas e em estado de pesadelo. A representação das realidades socialmente ignoradas por boa parte do público tem efeito de bomba, tanto pelos tipos humanos com quase nenhum caráter e muito sofrimento quanto pela linguagem direta e sem subterfúgios, numa repreensão a qualquer esperançazinha de que o trabalho ‘sujo’ e o jogo de sobrevivência desse mundo esteja sob algum pacto de “dignificação”. O livro, publicado primeiramente na internet sob o rótulo de folhetim, não traz essa tão aclamada originalidade de tática ou estratégia de captar os olhares e a atenção dos leitores. No século XIX, muitos autores publicavam seus romances na forma de folhetim, em jornais, antes de publicá-los em livros. No caso de “Entre rinhas”, o amarelo das antigas páginas folhetinescas é substituído pelo vermelho vivo de um folhetim do tempo dos cybers, dos bytes e dos excessos. É justamente no vermelho que as páginas impressas reagem: se as torcermos, é puro sangue.
Título: Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos
Autor: Ana Paula Maia
Editora: Record
Páginas: 160
Texto publicado no caderno 2+ do A tarde, 19/09/2009
quarta-feira, 7 de outubro de 2009
Mercedes Sosa (...)
Quero cantar-lhe a minha terra
E que floresça
Dentro do clima meu povo
E sua primavera
Inaugurar mil pombas de pão
E que não morram
Quero elevar-me num grito
E talvez possa
Tomar o sol da mão
Quando se afasta
Para tirar-lhe a luz e a voz
Meu povo espera
Quando teu te pares a olhar a vida
No vertice justo do tempo e a luz
Lados a grandeza do homem e seu dia
Seu caminho novo, seu canção azul
Quero brotar na espiga
Da consciência
Do homem novo que luta
Por sua manhã
E proclamar seu tempo azul de pé
Dando a cara
A rainha do cine roma, livro de Alejandro Reyes
Vidas sem muros em ruas fortificadas
“Tá, rapaz, calma, você não agüenta nada, não é só porque eu estou enchendo seu saco que você vai fechar o livro! O que acontece é que nós somos todos uma bosta, eu, você, o mundo todo, e se você não entende isso, você não tá com nada.” Quem fala é Betinho, o narrador do romance A rainha do Cine Roma do mexicano-‘baiano’ Alejandro Reyes, finalista do prêmio Leya e publicado em Portugal pela Oficina do Livro. Ao longo do livro, Betinho, jovem morador das ruas de Salvador, interpela o leitor e o sacode do seu conforto, envolvendo-o diretamente nos dilemas éticos e existenciais, enquanto conta (com raiva, com ironia, com humor, com desespero, com ternura) a sua própria história e a de Maria Aparecida, também menina que vive na rua. A violência, o desamparo, o abuso sexual, a fome, as drogas, a prostituição, o desespero – e também o amor, a esperança e a dignidade – cobram vida nessas e noutras personagens das ruas, das favelas e do submundo da noite de uma cidade do Salvador que se transforma, ela própria, em personagem. Seria fácil dizer que o romance é “um retrato da realidade como ela é”: a denúncia de um mundo fraturado pela desigualdade e o desvendamento de um universo ignorado. Mas o próprio Betinho desmancha a noção de verdade e a própria capacidade de narrar a realidade alheia: “Sei lá se o que vou contar aqui é verdade, vai ver que não foi nada disso, vai ver que não sei coisa nenhuma e não deveria nem estar falando”. O questionamento é duplamente interessante se considerarmos que o autor (que se apropria da voz de Betinho para falar desse mundo), não só não é menino de rua: não é brasileiro e nem mesmo o português é sua língua materna. Assim, o autor desconstrói de antemão a tentação de uma leitura fácil como um romance de denúncia social ou de preocupação etnográfica, desafiando, desmanchando e repensando fronteiras com o fazer literário. O romance é, em muitos sentidos, um livro justamente sobre fronteiras. As fronteiras da linguagem (a escolha de um narrador de rua implica numa linguagem dura, colorida, cadenciosa, cheia de gíria e da inventividade popular). As fronteiras de gênero, onde a sexualidade se manifesta numa subversão constante das categorias estabelecidas (um ponto fundamental no romance é a exploração sensível da manifestação do desejo, da sexualidade e do amor fora dos padrões e a fluidez das categorias de gênero). As fronteiras raciais, sempre presentes por baixo da aparente malemolência da suposta democracia racial. E as fronteiras de classe. São estas últimas as que, no romance, se manifestam menos permeáveis, fraturas quase intransponíveis pelos personagens que, quando tentam atravessá-las, iniciam uma queda vertiginosa de decadência.
Título: A rainha do Cine Roma
Autor: Alejandro Reyes
Editora: Oficina do Livro
Páginas: 287
Preço: 13.50 euros
Mais Inhotim
Mais Museu: Inhontim
Esse museu, em Brumadinho, MG, é uma experiência que realmente nos faz quase parte de uma instalação. Museu e obra se confudem, espectador e plantas dividem o espaço se complementando; as obras, muito bem escolhidas, oferecem uma diversidade de olhares, sensações, provas estéticas e conceitos de arte. O repertório é suficiente, nada sobra naquele oásis encantado. Entretanto, ficam perguntas inquietantes que extrapolam a experiência, mas que igualmente merecem ser expostas: quem paga aquela conta, enorrmmeee, e como a comunidade do pequeno povoado interage com o museu?