Ditadura e amor extremo pelo pai é um tema que não parece muito fácil de resolver sem que a violência embrenhe-se no texto. Mas é em meio a uma doçura cativante que uma história sobre pai – uma quase biografia, se melhor quisermos abordar o livro – desenrola-se em “A ausência que seremos”.
Desde Agamenon, o pai é quem faz a guerra; é aquele contra o caos, a autoridade contra a desobediência. E se não o próprio Deus, é o que se incumbe de negociar com deuses. O pai é a lei, e a pátria o seu território.
Um livro sobre um pai poderia supor um projeto intelectual complexo ou agarrado a um dos muitos caminhos simbólicos do tema. Mas é o contrário. É uma relato simples e poético em seu caminho direto ao cotidiano familiar, no qual se pode enxergar as armadilhas políticas e, ao mesmo tempo, testemunhar a imensa paixão de um filho por seu pai.
A literatura, a filosofia e a mitologia acolhem o pai como a força primeira. Pela carga ideológica em torno dessa figura, na densa e estreita relação com o papel autoritário dos patriarcas – leia-se ditadores– latino-americanos, qualquer versão contrária não só chama a atenção como também é bem-vinda.
Nesse sentido, “A ausência que seremos”, de Héctor Abad, é um livro ímpar, pela qualidade narrativa e, sobretudo, porque o protagonista da história é o Doutor Héctor Abad, um progenitor diferente, como nos diz o autor-narrador-filho: “Cristão na religião, marxista na economia e liberal na política”.
O médico Héctor Abad, colombiano, era de fato um convencido da necessidade de um compromisso social da medicina com a pobreza devastadora em países como a Colômbia. Durante toda a vida lutou por paz, tolerância e justiça. Extremamente sensível, trancava-se em seu estúdio para ouvir Bach e Beethoven na tentativa de curar sua dor e sua raiva.
Ele foi ameaçado várias vezes, mas não calou a boca nem se exilou, denunciando nas rádios e nos seus escritos os autores da violência que rasgou seu país até 25 de agosto de 1987, quando dois homens esvaziaram suas armas no seu corpo, na porta do Sindicato dos Professores de Medellín. Ele tinha 65 anos, usava terno e gravata, e em seu bolso foi encontrado um soneto de Borges, "Epitáfio", talvez um apócrifo, cujo primeiro verso diz: "Já somos a ausência que seremos..."
Por conta dessa vida intensa, inscrita na memória e na alma do autor do livro, foi necessário mais de duas décadas para que ele pudesse enfrentar a escrita dessa perda. "Eu arranco de dentro estas memórias como se fizesse um parto, como se um tumor fosse removido", diz Abad.
Não há dúvida de que o tempo não só o ajudou a amadurecer a escrita como também a encontrar o tom adequado em uma tradição literária onde prevalecem o pai autoritário, o tirano e o patriarca. Enquanto a figura do pai de Kafka se impõe sobre seu trabalho e sobre sua existência, o narrador colombiano, ao contrário, escreve: “Amava meu pai sobre todas as coisas... Amava meu pai com um amor animal. Gostava de seu suor, e também da lembrança de seu cheiro... Gostava de sua voz, de suas mãos, de sua roupa impecável e da meticulosa limpeza de seu corpo”.
Por isso talvez a estranheza do relato venha da surpresa: Pode esse pai amoroso existir? O pai que ri mais do que os seus filhos, que chora quando está triste, que canta tango e escreve poemas? Esse pai que nem é o que sustenta a família, numa divisão de papéis completamente atípico? o pai que não está ausente?
Como se fosse pouco, o Doutor Abad educa os seus filhos com abraços, carinhos frequentes; protege com amor a família, em meio a uma sociedade atravessada pela violência familiar, política, institucional e histórica.
"A idéia mais insuportável da minha infância era imaginar que meu pai pudesse morrer e por isso eu tinha decidido pular no rio Medellín se ele viesse a morrer."
É preciso imaginar o escritor, adulto, esperando até que um dia não deseje mais saltar para o rio Medellín para poder contar a vida desse homem amado e trazer das gavetas a cura da memória ferida. Talvez como Nietzsche, que queria escrever "para superar a realidade."
O resultado é a história de Héctor Abad e ao mesmo tempo carta, testemunho, documento e biografia: a saga da família do escritor iluminando a história de décadas na Colômbia, desde um lugar de amor e de justiça.
A vida é uma ferida absurda, diz o tango que Dr. Abad adorava cantar. Mas a vida não tem cura. Artaud disse-o melhor.
domingo, 13 de novembro de 2011
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