domingo, 13 de novembro de 2011

As rasuras da cidade

A literatura pode “cantar” lugares belos, inventar paisagens e compor memórias universais. “Literaturas”, como a de Fábio Mandingo, podem “gritar” lugares da cidade onde quase nunca se chega. E podem “chorar” as mazelas dos homens dessas cidades invisíveis. As paisagens que ninguém quer ver.
É assim que “Salvador Negro Rancor” contradiz a Salvador alegre e harmoniosa feita para turista ver. Fábio Mandingo, jovem escritor baiano, nasceu em Santo Amaro e cresceu nas periferias de Salvador.
Com a sua escrita, ele decide fazer denúncias, revelar o canto calado e colocar a pele negra e pobre sob discussão. Foi, ironicamente, lançado longe de Salvador. Encontrei-o por acaso, numa livraria paulista, numa noite movimentada, autografando e fazendo leituras de seu livro. Leitura que emocionou-me e despertou-me a curiosidade, já que ele, no momento em que cheguei à livraria, lia um conto sobre o carnaval com uma linguagem ritmada de forma diferente e com uma ironia refinada, construída com as gírias e vocábulos que pensamos esconder belezas.
“Descoberto” pelo “Ciclo Contínuo de Literaturas” do projeto VAI, apoiado pela prefeitura de São Paulo, cidade de tantos nordestinos, Fábio leva a Bahia contemporânea sob outro olhar e vai expondo as fotografias que só em notícias de jornais aparecem.
Mas não é sem qualidade literária ou poesia. Seus contos, que são seis – “Cisco”, “Kaska”, “Pipoca”, “Paulista”, “Por acaso” e “Salvador negro rancor” - vão fazer uma curva de berimbau, cujo arco distribui choros, soluços e risadas em sons particulares que em qualquer parte se reconhece: capoeira, Bahia, Salvador, candomblé, negros.
O berimbau de Fábio, contudo, está longe das batucadas que enfeitam a Bahia. Esse é afinado de outro jeito. Os contos são construídos, na maioria, em terceira pessoa; o narrador é sempre uma personagem irônica e pessimista. A linguagem é a das ruas, cadente, com uma música própria. Essa musicalidade, inclusive, vezes se aproxima do universo Hip Hop que, diferentemente do samba, tem umas “quebras” abruptas que parecem soluçar no descompasso das desigualdades. Essa entrada do Hip Hop na linguagem também acolhe essa mescla de fala e música, um “slam” solto e livre. Com umas expressões e gírias deslocadas, o autor revela seu domínio da pena, sua destreza literária.
As imagens também são elaboradas de forma a estarem coladas na história contada, nas palavras e nos sons, saindo das meras descrições usuais, como no conto Pipoca, Cisco e Paulista. Com exceção de “Kaska” – conto em que o autor brinca com o título colocado entre parêntesis (“Ou um estudo sócio-etnográfico sobre os gringos carentes”) – os contos trazem diálogos que revelam as tensões sociais e raciais existentes na cidade.
O encontro com o outro é sempre discutido, seja esse outro a polícia, o gringo ou o rico. O crack é denunciado, como no conto “Cisco”, mas sem tornar marginal o usuário: esse um vítima das políticas públicas – ou da falta delas – na cidade. Em “Salvador Negro Rancor”, título que dá nome ao livro, o narrador é em primeira pessoa e, apesar do título, ali vê-se amor pela cidade e a cultura baiana. Mas o conto denuncia e, de maneira interessante, a capoeira é trazida para a estrutura do conto, alem de ser o instrumento, o cenário e o meio de de se contar os encontros tensos e constantes com o “outro”, nesse caso, o gringo.
Aliás, “gringos” são alvo constante de Fábio em seus contos. Razão até de análise. Mas é interessante ver como ele observa esses lugares de troca, seja ela pacífica ou violenta. Por alguns contos, há expressões em inglês e muito bem ficam elas no cenário da Salvador “para turista ver” que ninguém enxerga. O nosso português tupiniquim agora de outro jeito, com outras línguas diferentes daquela do momento do Modernismo, mas ainda nesse lugar antropofágico.
O livro de Fábio, prefaciado por Róbson Véio do coletivo Blackitude, merece um forte “Salve”. É um bom começo para esse escritor que, sem medo, faz o seu trajeto até outras cidades para cantar a nossa. Agora o baiano lança também aqui o seu livro. De amor, mais do que de rancor.

Salvador Negro Rancor – Secretaria de Cultura- Prefeitura de São Paulo – 79 p. $15

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