O fenômeno é visível: uma infinidade de obras literárias foram adaptadas para os quadrinhos. As livrarias estão cheias de ofertas; os clássicos - da literatura brasileira à universal- chegam em velocidade impiedosa e igual “variação sobre o mesmo tema”, já que uma mesma obra pode ser vista em mais de uma adaptação, de diferentes editoras, como o “Memórias de um sargento de Milícias”, que deu origem a “Leonardinho: memórias do primeiro malandro brasileiro” e a outras versões com o título da obra original .
Livros que para alguns custariam trabalho para ler, pela sua extensão, linguagem ou pela sua complexidade, estão disponíveis em poucas páginas ilustradas. Mas é isso algo ruim? Bom? É válido? É didático? Depende da intenção. Com o fomento do governo Federal,visando estimular crianças e jovens em idade escolar a lerem, muitos projetos de adaptações literárias foram encaminhados a editoras e comprados pelo governo.
As editoras, percebendo o filão, avançaram e tudo quanto é clássico anda sendo quadrinizado. Não sendo advogada do diabo e ainda assumindo-me leitora orgulhosa de quadrinhos tanto quanto da literatura, posso dizer tranqüilamente que as obras literárias quadrinizadas não substituem as originais. E mais ainda: algumas não conseguem nem mesmo manter “o caráter” da obra inspiradora, como é o caso de “Triste fim de Policarpo Quaresma”, da editora Desiderata, que apesar do excelente trabalho gráfico dos artistas, que produziram bem, com desenhos magníficos e diagramação boa, não consegue manter a estrutura do romance e muito menos a personalidade de Policarpo.
As elipses e transições parecem funcionar em termos de ação, mas o contexto e a linguagem, que faziam do protagonista uma das personagens mais hilariantes e ao mesmo tempo comoventemente trágicas da nossa literatura, não conseguem se manter na obra citada. É uma excelente obra de HQ, mas não uma boa adaptação do clássico de Lima Barreto. Os recortes enfatizam o aspecto caricatural de Policarpo Quaresma, mas só.
Outras obras fazem o contrário: personagens secundárias acabam mais interessantes e alguns protagonistas se mostram mais atraentes, como na obra “inspirada” no livro “Memórias de um sargento de Mílicias”, de Manuel Antonio de Almeida, “Leonardinho: memórias do primeiro malandro brasileiro”.
Esse caso é muito bom para mostrar que as dificuldades para se adaptar uma obra para HQ são imensas. Se a intenção é fazer equivalência e desejar que, por exemplo, o leitor não se sinta prejudicado se não ler o original, então é melhor que o texto seja o mais fiel possível, o que encontra barreiras em se tratando de outra linguagem.
Se a intenção é seduzir o leitor, através de outro meio, e levá-lo ao livro que inspirou o HQ, o melhor seria a criação livre, assumida e bem cuidada, que, se não se mantém fiel ao texto, pelo menos ao caráter desse sim.
Assim como as adaptações levadas ao cinema, essas que chegam aos quadrinhos sofrem dos mesmos perigos. As HQ são um gênero literário, com sua linguagem, sua estética, suas particularidades e, ao se transpôr para elas um clássico, há que se ter em mente o objetivo final. Os artistas dos quadrinhos ganham a oportunidade rara de mostrarem seus trabalhos, de serem publicados, de entrarem no mercado, mas ao fazê-lo sobre o trabalho literário pré-existente, muitas vezes acabam se perdendo, pois se o texto literário não for traduzido com qualidade, fica-se a sensação de que o artista não é bom.
Se as obras adaptadas forem trabalhadas como suporte ao livro original, nas escolas, o cuidado deve ser ainda maior. O professor tem de ser sensível para apontar as diferenças, perceber o lúdico e o especial dos quadrinhos tanto quanto da literatura, esteticamente falando. A HQ “Memórias póstumas de Brás Cubas”, da Desiderata, é uma dessas que tem sucesso raro: o texto é mantido com a maior fidelidade possível- guardando-se as devidas proporções, literalmente falando - e ainda assim os artistas criam com a linguagem dos quadrinhos, deixando claro que se trata de outro suporte. Apesar de ser um texto difícil, os autores não tentam facilitá-lo, mesmo que possa ser, em alguns trechos, chato para o leitor comum de HQ .
Se o leitor da adaptação é o leitor de HQ, ele buscará ali outras coisas, o traço, a dinâmica, a sutileza do detalhe, a ironia, o humor, a imagem que se complementa com o texto ou que nem necessita do texto. Mas o leitor de literatura que vai ao HQ buscar o caminho mais fácil para a obra deseja o mais possível saber do que se trata aquele livro tão falado e jamais lido. Assim, posso dizer que essas “traduções”, em sua grande maioria, não oferecem isso. São muitos os projetos que visam o lucro mais do que outra coisa, com algumas exceções, diga-se também.
O melhor é se entender o gênero HQ como tal, parar de se delirar achando que os jovens que não gostam de ler livros vão chegar à literatura através de uma obra adaptada aos quadrinhos. Uns poucos talvez sim, mas o melhor é ver a coisa tal qual é no nosso tempo: HQ é um gênero independente, como o cinema, possuindo bom e ruim material como há bom e ruim filme, bom e ruim romance. Se o jovem lê HQ, ele já é um leitor. Precisa ser estimulado para ser leitor de outros gêneros, chegando-se assim à literatura. Sou a favor dos livros, sempre, e como professora de literatura, luto por ela, mas as manifestações todas de nosso tempo são bem-vindas. O que precisa é se ter qualidade estética, textual, artística.
“Literatura” em quadrinhos me atrai pelos desenhos, mas eu continuo preferindo ler Machado de Assis e Lima Barreto, entre outros como Kafka, Marcel Proust, Dostoiévski, nos livros, no “meio” em que eles se fizeram grande, com o que eles deixaram em suas linguagens, suas propostas, suas metáforas, descrições, jogos, ironias, narradores: suas estéticas. Alguém por acaso iria lá querer ler Mafalda, Garfield, Homem Aranha, Cebolinha, O surfista Prateado , Sandman em páginas de um romance? Vamos ver os filmes, ler os quadrinhos e ler a literatura.
Coleção Grandes clássicos em Graphic Novel/ Memórias póstumas de Brás Cubas/por João Batista Melado & Wellington Srbek: Desiderata editora.86 pág. 48,00 .
Coleção Grandes clássicos em Graphic Novel/Triste Fim de Policarpo Quaresma/por Edgar Vasques & Flávio Braga: Desiderata editora.70 p/42,00.
“Leonardinho: memórias do primeiro malandro brasileiro”. Por Walter Pax e Vicente Castro. Editora Saraiva.72 p. 35,00.
domingo, 13 de novembro de 2011
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