domingo, 13 de novembro de 2011

O carro amarelo da infância

O livro “Três Infâncias”, de Mayrant Gallo, reúne três histórias sobre a infância, sobre o tempo e sobre as descobertas da vida em meio à aridez das dores, das perdas, das faltas.
Quando vi, na capa, a imagem de três balões, pensei no belo filme de Albert Lamorisse - um clássico sobre a infância- “O balão vermelho”.
No belo filme de Lamorisse, a paisagem parisiense pálida, do pós guerra, é invadida pelas cores dos balões que, como se fossem vivos, fazem a reclamação da infância, trazem o lirismo e a fantasia para a hostilidade da órfã infância européia.
Curiosamente, algo da crueldade que há naquele filme- por mais que seja lírico e belo- também pode ser visto nas histórias de Mayrant: há qualquer coisa de cruel em ser criança e ter de deixar de ser, mas há também maldades outras: um filho órfão de mãe vendo o seu pai ser humilhado ao cobrar de um engenheiro o dinheiro devido; a fome e a pobreza que fazem com que a bicicleta de um filho seja vendida para ter um pouco de comida; o vazio de uma cidade de risos infantis depois de um ataque aéreo; a terna despedida da infância que não vai voltar.
A novela “Moinhos”, que ganhou o prêmio Literatura para Todos, do MEC, em 2009, traz capítulos construídos engenhosamente; palavras pensadas e lapidadas para se chegar ao sentimento do narrador, o filho que um dia acompanhou seu pai pela vida, vendo-o sofrer a humilhação de ir cobrar o dinheiro que lhe é devido a um engenheiro que jamais paga a dívida.
Entre a penúria, os fiados no armazém, a entrada clandestina no trem, há a esperança curiosa de qualquer alívio com a presença da “loura”. É essa mulher, sensual, misteriosa, quiçá até doce, que trará de algum lugar do futuro a memória daquele filho que arrasta seu pai pela vida. E é ela também que dará a ilusão de que a desgraça se vai acabar. Mas ficará tudo ainda pior.
O conto é duro e terno. As frases permitem uma linha de ação contínua, que sai da memória e se torna presente no movimento desse narrador que recupera detalhes de si mesmo ao localizar seu pai: reduto de sua infância, prova absurda de sua própria dor. Não há filho sem pai. Há lapsos, quem sabe se do escritor, que intrigam, ou que fragilizam em certa medida, o precioso da história, como a frase “the day after”, que mais parece uma certa insistência do Mayrant Gallo do que do “autor-narrador” que viveu aquela história, um narrador longe disso e perto demais de “no entanto, fui com meu pai. Pela rua e pela vida, lentamente.”
Esses “Moinhos” emocionaram-me profundamente. Da mesma forma que me encantaram as “manchas” de “O ritual no Jardim” e o não poema-canção, o não conto do “romance” “Dias de Garoto”.
Em “O Ritual no Jardim” a meninice sai em burburinhos de histórias de quintal e de avô, no tempo da guerra, de meninas e de meninos que crescem e deixam em jardins as suas infâncias. São contos-capítulos curtos, pincelados de ludicidade, ternura e também segredos. As palavras e frases se movimentam secretamente naqueles espaços exíguos, naquelas manchas de tardes, e vão transformando em homens aqueles sonhos. O cenário de uma outra época não pareceria combinar com as narrativas curtas, contemporâneas, mas é nisso o segredo quase todo: escapolem das memórias de todas as infâncias do ontem ao hoje.
“Dias de Garoto” alcança-nos de outro tempo também, dá até uma certa raiva pensar que tudo nos diz respeito, que essas dores fazem do menino o homem que estraga a vida toda depois. Sonhos de infância.
As cidades, os cenários, são vários, são universais, São Paulo, Rio, um quintal ou um jardim, uma estação de trem de qualquer parte. E o quadrado vazio depois de uma explosão é a nossa história de intriga de gente muito grande: Guerras que ficaram sem sentido por aí.
Um livro com muito sobre esse tempo de brincadeiras e sobre os segredos das gentes crescidas. Belas histórias em narrativas densas.

Três Infâncias/Casarão do verbo/110p/R$24.

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