“Como as rochas, não gostava de máquinas, tinha horror das explosões. Encontrar atalhos preciosos no leito do rio não era motivo de alegrias passarinhas(...).” As palavras do conto “preciosidade” parece definir a premissa de Luciana Braga: seu devir poético, sua caneta deslizante desvia-se de explosões mecânicas ou programadas.
O seu primeiro livros de contos “Há cores e acordes” traz oito narrativas cujo eixo é a redescoberta. Prosa-poética que aposta na leveza e na inata força metamorfoseante da palavra, o conjunto da jovem autora, que já foi premiada com livros para crianças, traz a metáfora como a sua ferramenta principal para contar histórias.
Em sua forma particular de descortinar as suas personagens, o cotidiano se traduz em encontros subjetivos dos fatos com as palavras; são essas que parecem assumir o lugar das emoções, da surpresa, dos desencontros das personagens. Elas são algo vivo que roça suavemente o leitor, sem chocá-lo, sem explosões.
Em “Mudança”, um dos melhores contos do livro, a personagem nos leva para um lugar único, uma geografia outra, sendo a cidade um espaço de sentidos, guardador de passagens, sejam essas físicas ou vestígios de lembranças. Ali há encontros suaves com gatos e meninas, metáforas e segredos se misturando ao passado e ao presente de forma que todos os mistérios da morte sejam sutilmente entregues. A naturalidade desse fato vem da possibilidade de se ter na memória um cúmplice: a vida é caminho sem fim em sua beleza.
Maria e Osório compartilham suspeitas de amor em “Preciosidade”, com fugas dando-se, paralelamente, ao desejo de encontrarem-se na natureza antes de tudo, já que - como rio ou como terra- homem e mulher ali se traduzem. Amor, desejo, viuvez, maternidade: pactos de quem se deixa entregue ao sentimento.
Em “Fotografiló”, outro belo conto, Filomena sobrevive “fabricando pequenos milagres diários”. Sua existência pelos cantos da fria rodoviária, ou pelos sítios desertos e despudorados do abandono, emociona o leitor aproximando-o da vida crua de um não conto de fadas. E a poesia daquela prosa ajuda o desbravar desses lugares destinados aos solitários abandonados, faz-no ainda mais perto.
As tulipas amarelas do senhor Grendo ou a Rosa de algum revolucionário fazem parte do mesmo baú: são prendas escondidas na vida dos contos, descortinadas por poesia, beleza de arranjo que faz o leitor se ater a algo lá fundo; são qualquer sentimento estranho que guardávamos em repetidos cotidianos e diferentes desejos. Aquela recusa sempre ensaiada ou a entrega inusitada: a autora domina os segredos. “Butin de guerra”, “Dominique”, “À beira de amar”... seus contos são todos sopros de vida; de convite ao assentamento nesse tempo irrequieto e violento.
Luciana Lorens Braga fala de amor, de morte, de maternidade, velhice, memória, encontro, abandono, solidão. Para ela é tudo razão para a beleza do contar. A sua intimidade com as palavras é seu trunfo, embora se exceda nas imagens em alguns contos, sobrepondo-as desnecessariamente. Mas é com metáforas fortes, uma consciência de ritmo, de sonoridade, de “peso” que recombina as palavras todas, rearranjando-as de forma particular. Sua escrita é delicada e ao mesmo tempo forte. Seu tempo de histórias é qualquer um, ela não se preocupa com marcas, assume tranqüila um certo olhar: quer a sua escrita impregnada de alguma poesia à qual se relaciona.
Cachorros, gatos, meninas, ruas, rios, flores: Luciana não se limita. Ela se joga no vão lírico de sua prosa, deixa-se livre na aposta pela doçura, pela recusa à violência mesmo quando denuncia o feio que a vida guarda. As palavras são quase uma proposta de vida. Descobrir o cotidiano e reinventá-lo é fato; a escrita é o final do divã, o leito do rio, a última flor arrancada.
Há cores e acordes/Ofício das palavras. 159p.
domingo, 13 de novembro de 2011
A polêmica das adaptações literárias para os quadrinhos
O fenômeno é visível: uma infinidade de obras literárias foram adaptadas para os quadrinhos. As livrarias estão cheias de ofertas; os clássicos - da literatura brasileira à universal- chegam em velocidade impiedosa e igual “variação sobre o mesmo tema”, já que uma mesma obra pode ser vista em mais de uma adaptação, de diferentes editoras, como o “Memórias de um sargento de Milícias”, que deu origem a “Leonardinho: memórias do primeiro malandro brasileiro” e a outras versões com o título da obra original .
Livros que para alguns custariam trabalho para ler, pela sua extensão, linguagem ou pela sua complexidade, estão disponíveis em poucas páginas ilustradas. Mas é isso algo ruim? Bom? É válido? É didático? Depende da intenção. Com o fomento do governo Federal,visando estimular crianças e jovens em idade escolar a lerem, muitos projetos de adaptações literárias foram encaminhados a editoras e comprados pelo governo.
As editoras, percebendo o filão, avançaram e tudo quanto é clássico anda sendo quadrinizado. Não sendo advogada do diabo e ainda assumindo-me leitora orgulhosa de quadrinhos tanto quanto da literatura, posso dizer tranqüilamente que as obras literárias quadrinizadas não substituem as originais. E mais ainda: algumas não conseguem nem mesmo manter “o caráter” da obra inspiradora, como é o caso de “Triste fim de Policarpo Quaresma”, da editora Desiderata, que apesar do excelente trabalho gráfico dos artistas, que produziram bem, com desenhos magníficos e diagramação boa, não consegue manter a estrutura do romance e muito menos a personalidade de Policarpo.
As elipses e transições parecem funcionar em termos de ação, mas o contexto e a linguagem, que faziam do protagonista uma das personagens mais hilariantes e ao mesmo tempo comoventemente trágicas da nossa literatura, não conseguem se manter na obra citada. É uma excelente obra de HQ, mas não uma boa adaptação do clássico de Lima Barreto. Os recortes enfatizam o aspecto caricatural de Policarpo Quaresma, mas só.
Outras obras fazem o contrário: personagens secundárias acabam mais interessantes e alguns protagonistas se mostram mais atraentes, como na obra “inspirada” no livro “Memórias de um sargento de Mílicias”, de Manuel Antonio de Almeida, “Leonardinho: memórias do primeiro malandro brasileiro”.
Esse caso é muito bom para mostrar que as dificuldades para se adaptar uma obra para HQ são imensas. Se a intenção é fazer equivalência e desejar que, por exemplo, o leitor não se sinta prejudicado se não ler o original, então é melhor que o texto seja o mais fiel possível, o que encontra barreiras em se tratando de outra linguagem.
Se a intenção é seduzir o leitor, através de outro meio, e levá-lo ao livro que inspirou o HQ, o melhor seria a criação livre, assumida e bem cuidada, que, se não se mantém fiel ao texto, pelo menos ao caráter desse sim.
Assim como as adaptações levadas ao cinema, essas que chegam aos quadrinhos sofrem dos mesmos perigos. As HQ são um gênero literário, com sua linguagem, sua estética, suas particularidades e, ao se transpôr para elas um clássico, há que se ter em mente o objetivo final. Os artistas dos quadrinhos ganham a oportunidade rara de mostrarem seus trabalhos, de serem publicados, de entrarem no mercado, mas ao fazê-lo sobre o trabalho literário pré-existente, muitas vezes acabam se perdendo, pois se o texto literário não for traduzido com qualidade, fica-se a sensação de que o artista não é bom.
Se as obras adaptadas forem trabalhadas como suporte ao livro original, nas escolas, o cuidado deve ser ainda maior. O professor tem de ser sensível para apontar as diferenças, perceber o lúdico e o especial dos quadrinhos tanto quanto da literatura, esteticamente falando. A HQ “Memórias póstumas de Brás Cubas”, da Desiderata, é uma dessas que tem sucesso raro: o texto é mantido com a maior fidelidade possível- guardando-se as devidas proporções, literalmente falando - e ainda assim os artistas criam com a linguagem dos quadrinhos, deixando claro que se trata de outro suporte. Apesar de ser um texto difícil, os autores não tentam facilitá-lo, mesmo que possa ser, em alguns trechos, chato para o leitor comum de HQ .
Se o leitor da adaptação é o leitor de HQ, ele buscará ali outras coisas, o traço, a dinâmica, a sutileza do detalhe, a ironia, o humor, a imagem que se complementa com o texto ou que nem necessita do texto. Mas o leitor de literatura que vai ao HQ buscar o caminho mais fácil para a obra deseja o mais possível saber do que se trata aquele livro tão falado e jamais lido. Assim, posso dizer que essas “traduções”, em sua grande maioria, não oferecem isso. São muitos os projetos que visam o lucro mais do que outra coisa, com algumas exceções, diga-se também.
O melhor é se entender o gênero HQ como tal, parar de se delirar achando que os jovens que não gostam de ler livros vão chegar à literatura através de uma obra adaptada aos quadrinhos. Uns poucos talvez sim, mas o melhor é ver a coisa tal qual é no nosso tempo: HQ é um gênero independente, como o cinema, possuindo bom e ruim material como há bom e ruim filme, bom e ruim romance. Se o jovem lê HQ, ele já é um leitor. Precisa ser estimulado para ser leitor de outros gêneros, chegando-se assim à literatura. Sou a favor dos livros, sempre, e como professora de literatura, luto por ela, mas as manifestações todas de nosso tempo são bem-vindas. O que precisa é se ter qualidade estética, textual, artística.
“Literatura” em quadrinhos me atrai pelos desenhos, mas eu continuo preferindo ler Machado de Assis e Lima Barreto, entre outros como Kafka, Marcel Proust, Dostoiévski, nos livros, no “meio” em que eles se fizeram grande, com o que eles deixaram em suas linguagens, suas propostas, suas metáforas, descrições, jogos, ironias, narradores: suas estéticas. Alguém por acaso iria lá querer ler Mafalda, Garfield, Homem Aranha, Cebolinha, O surfista Prateado , Sandman em páginas de um romance? Vamos ver os filmes, ler os quadrinhos e ler a literatura.
Coleção Grandes clássicos em Graphic Novel/ Memórias póstumas de Brás Cubas/por João Batista Melado & Wellington Srbek: Desiderata editora.86 pág. 48,00 .
Coleção Grandes clássicos em Graphic Novel/Triste Fim de Policarpo Quaresma/por Edgar Vasques & Flávio Braga: Desiderata editora.70 p/42,00.
“Leonardinho: memórias do primeiro malandro brasileiro”. Por Walter Pax e Vicente Castro. Editora Saraiva.72 p. 35,00.
Livros que para alguns custariam trabalho para ler, pela sua extensão, linguagem ou pela sua complexidade, estão disponíveis em poucas páginas ilustradas. Mas é isso algo ruim? Bom? É válido? É didático? Depende da intenção. Com o fomento do governo Federal,visando estimular crianças e jovens em idade escolar a lerem, muitos projetos de adaptações literárias foram encaminhados a editoras e comprados pelo governo.
As editoras, percebendo o filão, avançaram e tudo quanto é clássico anda sendo quadrinizado. Não sendo advogada do diabo e ainda assumindo-me leitora orgulhosa de quadrinhos tanto quanto da literatura, posso dizer tranqüilamente que as obras literárias quadrinizadas não substituem as originais. E mais ainda: algumas não conseguem nem mesmo manter “o caráter” da obra inspiradora, como é o caso de “Triste fim de Policarpo Quaresma”, da editora Desiderata, que apesar do excelente trabalho gráfico dos artistas, que produziram bem, com desenhos magníficos e diagramação boa, não consegue manter a estrutura do romance e muito menos a personalidade de Policarpo.
As elipses e transições parecem funcionar em termos de ação, mas o contexto e a linguagem, que faziam do protagonista uma das personagens mais hilariantes e ao mesmo tempo comoventemente trágicas da nossa literatura, não conseguem se manter na obra citada. É uma excelente obra de HQ, mas não uma boa adaptação do clássico de Lima Barreto. Os recortes enfatizam o aspecto caricatural de Policarpo Quaresma, mas só.
Outras obras fazem o contrário: personagens secundárias acabam mais interessantes e alguns protagonistas se mostram mais atraentes, como na obra “inspirada” no livro “Memórias de um sargento de Mílicias”, de Manuel Antonio de Almeida, “Leonardinho: memórias do primeiro malandro brasileiro”.
Esse caso é muito bom para mostrar que as dificuldades para se adaptar uma obra para HQ são imensas. Se a intenção é fazer equivalência e desejar que, por exemplo, o leitor não se sinta prejudicado se não ler o original, então é melhor que o texto seja o mais fiel possível, o que encontra barreiras em se tratando de outra linguagem.
Se a intenção é seduzir o leitor, através de outro meio, e levá-lo ao livro que inspirou o HQ, o melhor seria a criação livre, assumida e bem cuidada, que, se não se mantém fiel ao texto, pelo menos ao caráter desse sim.
Assim como as adaptações levadas ao cinema, essas que chegam aos quadrinhos sofrem dos mesmos perigos. As HQ são um gênero literário, com sua linguagem, sua estética, suas particularidades e, ao se transpôr para elas um clássico, há que se ter em mente o objetivo final. Os artistas dos quadrinhos ganham a oportunidade rara de mostrarem seus trabalhos, de serem publicados, de entrarem no mercado, mas ao fazê-lo sobre o trabalho literário pré-existente, muitas vezes acabam se perdendo, pois se o texto literário não for traduzido com qualidade, fica-se a sensação de que o artista não é bom.
Se as obras adaptadas forem trabalhadas como suporte ao livro original, nas escolas, o cuidado deve ser ainda maior. O professor tem de ser sensível para apontar as diferenças, perceber o lúdico e o especial dos quadrinhos tanto quanto da literatura, esteticamente falando. A HQ “Memórias póstumas de Brás Cubas”, da Desiderata, é uma dessas que tem sucesso raro: o texto é mantido com a maior fidelidade possível- guardando-se as devidas proporções, literalmente falando - e ainda assim os artistas criam com a linguagem dos quadrinhos, deixando claro que se trata de outro suporte. Apesar de ser um texto difícil, os autores não tentam facilitá-lo, mesmo que possa ser, em alguns trechos, chato para o leitor comum de HQ .
Se o leitor da adaptação é o leitor de HQ, ele buscará ali outras coisas, o traço, a dinâmica, a sutileza do detalhe, a ironia, o humor, a imagem que se complementa com o texto ou que nem necessita do texto. Mas o leitor de literatura que vai ao HQ buscar o caminho mais fácil para a obra deseja o mais possível saber do que se trata aquele livro tão falado e jamais lido. Assim, posso dizer que essas “traduções”, em sua grande maioria, não oferecem isso. São muitos os projetos que visam o lucro mais do que outra coisa, com algumas exceções, diga-se também.
O melhor é se entender o gênero HQ como tal, parar de se delirar achando que os jovens que não gostam de ler livros vão chegar à literatura através de uma obra adaptada aos quadrinhos. Uns poucos talvez sim, mas o melhor é ver a coisa tal qual é no nosso tempo: HQ é um gênero independente, como o cinema, possuindo bom e ruim material como há bom e ruim filme, bom e ruim romance. Se o jovem lê HQ, ele já é um leitor. Precisa ser estimulado para ser leitor de outros gêneros, chegando-se assim à literatura. Sou a favor dos livros, sempre, e como professora de literatura, luto por ela, mas as manifestações todas de nosso tempo são bem-vindas. O que precisa é se ter qualidade estética, textual, artística.
“Literatura” em quadrinhos me atrai pelos desenhos, mas eu continuo preferindo ler Machado de Assis e Lima Barreto, entre outros como Kafka, Marcel Proust, Dostoiévski, nos livros, no “meio” em que eles se fizeram grande, com o que eles deixaram em suas linguagens, suas propostas, suas metáforas, descrições, jogos, ironias, narradores: suas estéticas. Alguém por acaso iria lá querer ler Mafalda, Garfield, Homem Aranha, Cebolinha, O surfista Prateado , Sandman em páginas de um romance? Vamos ver os filmes, ler os quadrinhos e ler a literatura.
Coleção Grandes clássicos em Graphic Novel/ Memórias póstumas de Brás Cubas/por João Batista Melado & Wellington Srbek: Desiderata editora.86 pág. 48,00 .
Coleção Grandes clássicos em Graphic Novel/Triste Fim de Policarpo Quaresma/por Edgar Vasques & Flávio Braga: Desiderata editora.70 p/42,00.
“Leonardinho: memórias do primeiro malandro brasileiro”. Por Walter Pax e Vicente Castro. Editora Saraiva.72 p. 35,00.
Ditadura e amor: um livro para o pai
Ditadura e amor extremo pelo pai é um tema que não parece muito fácil de resolver sem que a violência embrenhe-se no texto. Mas é em meio a uma doçura cativante que uma história sobre pai – uma quase biografia, se melhor quisermos abordar o livro – desenrola-se em “A ausência que seremos”.
Desde Agamenon, o pai é quem faz a guerra; é aquele contra o caos, a autoridade contra a desobediência. E se não o próprio Deus, é o que se incumbe de negociar com deuses. O pai é a lei, e a pátria o seu território.
Um livro sobre um pai poderia supor um projeto intelectual complexo ou agarrado a um dos muitos caminhos simbólicos do tema. Mas é o contrário. É uma relato simples e poético em seu caminho direto ao cotidiano familiar, no qual se pode enxergar as armadilhas políticas e, ao mesmo tempo, testemunhar a imensa paixão de um filho por seu pai.
A literatura, a filosofia e a mitologia acolhem o pai como a força primeira. Pela carga ideológica em torno dessa figura, na densa e estreita relação com o papel autoritário dos patriarcas – leia-se ditadores– latino-americanos, qualquer versão contrária não só chama a atenção como também é bem-vinda.
Nesse sentido, “A ausência que seremos”, de Héctor Abad, é um livro ímpar, pela qualidade narrativa e, sobretudo, porque o protagonista da história é o Doutor Héctor Abad, um progenitor diferente, como nos diz o autor-narrador-filho: “Cristão na religião, marxista na economia e liberal na política”.
O médico Héctor Abad, colombiano, era de fato um convencido da necessidade de um compromisso social da medicina com a pobreza devastadora em países como a Colômbia. Durante toda a vida lutou por paz, tolerância e justiça. Extremamente sensível, trancava-se em seu estúdio para ouvir Bach e Beethoven na tentativa de curar sua dor e sua raiva.
Ele foi ameaçado várias vezes, mas não calou a boca nem se exilou, denunciando nas rádios e nos seus escritos os autores da violência que rasgou seu país até 25 de agosto de 1987, quando dois homens esvaziaram suas armas no seu corpo, na porta do Sindicato dos Professores de Medellín. Ele tinha 65 anos, usava terno e gravata, e em seu bolso foi encontrado um soneto de Borges, "Epitáfio", talvez um apócrifo, cujo primeiro verso diz: "Já somos a ausência que seremos..."
Por conta dessa vida intensa, inscrita na memória e na alma do autor do livro, foi necessário mais de duas décadas para que ele pudesse enfrentar a escrita dessa perda. "Eu arranco de dentro estas memórias como se fizesse um parto, como se um tumor fosse removido", diz Abad.
Não há dúvida de que o tempo não só o ajudou a amadurecer a escrita como também a encontrar o tom adequado em uma tradição literária onde prevalecem o pai autoritário, o tirano e o patriarca. Enquanto a figura do pai de Kafka se impõe sobre seu trabalho e sobre sua existência, o narrador colombiano, ao contrário, escreve: “Amava meu pai sobre todas as coisas... Amava meu pai com um amor animal. Gostava de seu suor, e também da lembrança de seu cheiro... Gostava de sua voz, de suas mãos, de sua roupa impecável e da meticulosa limpeza de seu corpo”.
Por isso talvez a estranheza do relato venha da surpresa: Pode esse pai amoroso existir? O pai que ri mais do que os seus filhos, que chora quando está triste, que canta tango e escreve poemas? Esse pai que nem é o que sustenta a família, numa divisão de papéis completamente atípico? o pai que não está ausente?
Como se fosse pouco, o Doutor Abad educa os seus filhos com abraços, carinhos frequentes; protege com amor a família, em meio a uma sociedade atravessada pela violência familiar, política, institucional e histórica.
"A idéia mais insuportável da minha infância era imaginar que meu pai pudesse morrer e por isso eu tinha decidido pular no rio Medellín se ele viesse a morrer."
É preciso imaginar o escritor, adulto, esperando até que um dia não deseje mais saltar para o rio Medellín para poder contar a vida desse homem amado e trazer das gavetas a cura da memória ferida. Talvez como Nietzsche, que queria escrever "para superar a realidade."
O resultado é a história de Héctor Abad e ao mesmo tempo carta, testemunho, documento e biografia: a saga da família do escritor iluminando a história de décadas na Colômbia, desde um lugar de amor e de justiça.
A vida é uma ferida absurda, diz o tango que Dr. Abad adorava cantar. Mas a vida não tem cura. Artaud disse-o melhor.
Desde Agamenon, o pai é quem faz a guerra; é aquele contra o caos, a autoridade contra a desobediência. E se não o próprio Deus, é o que se incumbe de negociar com deuses. O pai é a lei, e a pátria o seu território.
Um livro sobre um pai poderia supor um projeto intelectual complexo ou agarrado a um dos muitos caminhos simbólicos do tema. Mas é o contrário. É uma relato simples e poético em seu caminho direto ao cotidiano familiar, no qual se pode enxergar as armadilhas políticas e, ao mesmo tempo, testemunhar a imensa paixão de um filho por seu pai.
A literatura, a filosofia e a mitologia acolhem o pai como a força primeira. Pela carga ideológica em torno dessa figura, na densa e estreita relação com o papel autoritário dos patriarcas – leia-se ditadores– latino-americanos, qualquer versão contrária não só chama a atenção como também é bem-vinda.
Nesse sentido, “A ausência que seremos”, de Héctor Abad, é um livro ímpar, pela qualidade narrativa e, sobretudo, porque o protagonista da história é o Doutor Héctor Abad, um progenitor diferente, como nos diz o autor-narrador-filho: “Cristão na religião, marxista na economia e liberal na política”.
O médico Héctor Abad, colombiano, era de fato um convencido da necessidade de um compromisso social da medicina com a pobreza devastadora em países como a Colômbia. Durante toda a vida lutou por paz, tolerância e justiça. Extremamente sensível, trancava-se em seu estúdio para ouvir Bach e Beethoven na tentativa de curar sua dor e sua raiva.
Ele foi ameaçado várias vezes, mas não calou a boca nem se exilou, denunciando nas rádios e nos seus escritos os autores da violência que rasgou seu país até 25 de agosto de 1987, quando dois homens esvaziaram suas armas no seu corpo, na porta do Sindicato dos Professores de Medellín. Ele tinha 65 anos, usava terno e gravata, e em seu bolso foi encontrado um soneto de Borges, "Epitáfio", talvez um apócrifo, cujo primeiro verso diz: "Já somos a ausência que seremos..."
Por conta dessa vida intensa, inscrita na memória e na alma do autor do livro, foi necessário mais de duas décadas para que ele pudesse enfrentar a escrita dessa perda. "Eu arranco de dentro estas memórias como se fizesse um parto, como se um tumor fosse removido", diz Abad.
Não há dúvida de que o tempo não só o ajudou a amadurecer a escrita como também a encontrar o tom adequado em uma tradição literária onde prevalecem o pai autoritário, o tirano e o patriarca. Enquanto a figura do pai de Kafka se impõe sobre seu trabalho e sobre sua existência, o narrador colombiano, ao contrário, escreve: “Amava meu pai sobre todas as coisas... Amava meu pai com um amor animal. Gostava de seu suor, e também da lembrança de seu cheiro... Gostava de sua voz, de suas mãos, de sua roupa impecável e da meticulosa limpeza de seu corpo”.
Por isso talvez a estranheza do relato venha da surpresa: Pode esse pai amoroso existir? O pai que ri mais do que os seus filhos, que chora quando está triste, que canta tango e escreve poemas? Esse pai que nem é o que sustenta a família, numa divisão de papéis completamente atípico? o pai que não está ausente?
Como se fosse pouco, o Doutor Abad educa os seus filhos com abraços, carinhos frequentes; protege com amor a família, em meio a uma sociedade atravessada pela violência familiar, política, institucional e histórica.
"A idéia mais insuportável da minha infância era imaginar que meu pai pudesse morrer e por isso eu tinha decidido pular no rio Medellín se ele viesse a morrer."
É preciso imaginar o escritor, adulto, esperando até que um dia não deseje mais saltar para o rio Medellín para poder contar a vida desse homem amado e trazer das gavetas a cura da memória ferida. Talvez como Nietzsche, que queria escrever "para superar a realidade."
O resultado é a história de Héctor Abad e ao mesmo tempo carta, testemunho, documento e biografia: a saga da família do escritor iluminando a história de décadas na Colômbia, desde um lugar de amor e de justiça.
A vida é uma ferida absurda, diz o tango que Dr. Abad adorava cantar. Mas a vida não tem cura. Artaud disse-o melhor.
Atrás da sinagoga
em: 2+ em 12-11-2011
O escritor norte-americano Philip Roth recebeu críticas ruins com seu romance anterior, mas “Nêmesis” eliminou qualquer dúvida possível sobre o seu declínio como autor. Roth se move na tradição norte-americana de grandes escritores usando um estilo jornalístico com recortes de poesia.
“Nêmesis” se passa na comunidade judaica de Newark, New Jersey. Durante o verão de 1944, eclode uma epidemia de poliomielite. Não é a primeira vez, mas o número de mortos cresce dramaticamente. Cantor Bucky, um jovem professor judeu que dirige uma escola de verão, enfrenta a morte de seus alunos com uma mistura de espanto e raiva. A vida de Cantor, um herói corroído por dúvidas éticas e morais, não tem sido fácil. Sua mãe morreu no parto, seu pai passou um tempo na cadeia, sua miopia o impediu de se alistar no exército para lutar. Ainda assim, os avós maternos tiveram o cuidado de dar todo o carinho que uma criança pode aspirar. Seu avô lhe ensinou disciplina, princípios morais fortes, auto-controle. Aos 23 anos, Cantor é um professor responsável e comprometido com o bem-estar dos seus alunos, quase um irmão a quem todos tem amor e respeito.
“Nêmesis” é dividido em três atos, um recurso comum em Philip Roth, que joga com o ideal clássico da catarse. O romance começa como uma história idílica ofuscada pelos primeiros casos de poliomielite. Mas a dor que invade o coração das famílias afetadas desfaz qualquer ilusão de solidariedade. Essa dor não sai com demonstrações de carinho ou com palavras de conforto na sinagoga.
“Poliomielite” é desconfiança, raiva, ressentimento. Poliomielite não se limita ao corpo doente. Seus estragos também são refletidos na podridão moral de uma sociedade que perde a confiança em Deus, na justiça ou misericórdia. Philip Roth faz da poliomielite uma metáfora, inspirado na peste de Camus, que alerta para os perigos do fascismo, um vírus que pode adormecer até ter a oportunidade de retornar. Roth vai ainda mais longe: o problema não é o fascismo. O problema é a condição humana. Nossas reivindicações morais são fantasias retóricas; algo pode se desmoronar quando se vê o medo. O pânico nos traz de volta à “pré-moral” do Estado.
Cantor terá de enfrentar um dilema moral que irá testar a sua integridade quando oferecem a ele um trabalho longe do foco da epidemia, pois terá de abandonar seus alunos. Ele será obrigado a escolher e determinar se vai viver de acordo com suas exigências morais ou sucumbir ao apelo de seu destino.
Philip Roth não fugiu do desafio de enfrentar mais uma vez a bondade presumida de Deus. Se Deus é bom e onipotente, por que ele permite a morte de inocentes? Cantor acredita que Deus age como uma velha estúpida e cruel.
“Nêmesis” é um romance extraordinário, onde se vê o talento de Roth como um contador de histórias e seu compromisso com os grandes temas da literatura: o ser humano, a morte, Deus, o mal, o irracional, a tensão entre o indivíduo e a comunidade, a crueldade da sociedade americana onde o “mal” parece ser uma presença permanente. Seria absurdo procurar esperança nestas páginas. Philip Roth não tinha a intenção de desenhar uma fábula moral. Simplesmente, ele mostra a tremenda vulnerabilidade dos seres humanos. No final, todos fracassam na mesma infelicidade.
Trad. Jorio Dauster/Cia das Letra
O escritor norte-americano Philip Roth recebeu críticas ruins com seu romance anterior, mas “Nêmesis” eliminou qualquer dúvida possível sobre o seu declínio como autor. Roth se move na tradição norte-americana de grandes escritores usando um estilo jornalístico com recortes de poesia.
“Nêmesis” se passa na comunidade judaica de Newark, New Jersey. Durante o verão de 1944, eclode uma epidemia de poliomielite. Não é a primeira vez, mas o número de mortos cresce dramaticamente. Cantor Bucky, um jovem professor judeu que dirige uma escola de verão, enfrenta a morte de seus alunos com uma mistura de espanto e raiva. A vida de Cantor, um herói corroído por dúvidas éticas e morais, não tem sido fácil. Sua mãe morreu no parto, seu pai passou um tempo na cadeia, sua miopia o impediu de se alistar no exército para lutar. Ainda assim, os avós maternos tiveram o cuidado de dar todo o carinho que uma criança pode aspirar. Seu avô lhe ensinou disciplina, princípios morais fortes, auto-controle. Aos 23 anos, Cantor é um professor responsável e comprometido com o bem-estar dos seus alunos, quase um irmão a quem todos tem amor e respeito.
“Nêmesis” é dividido em três atos, um recurso comum em Philip Roth, que joga com o ideal clássico da catarse. O romance começa como uma história idílica ofuscada pelos primeiros casos de poliomielite. Mas a dor que invade o coração das famílias afetadas desfaz qualquer ilusão de solidariedade. Essa dor não sai com demonstrações de carinho ou com palavras de conforto na sinagoga.
“Poliomielite” é desconfiança, raiva, ressentimento. Poliomielite não se limita ao corpo doente. Seus estragos também são refletidos na podridão moral de uma sociedade que perde a confiança em Deus, na justiça ou misericórdia. Philip Roth faz da poliomielite uma metáfora, inspirado na peste de Camus, que alerta para os perigos do fascismo, um vírus que pode adormecer até ter a oportunidade de retornar. Roth vai ainda mais longe: o problema não é o fascismo. O problema é a condição humana. Nossas reivindicações morais são fantasias retóricas; algo pode se desmoronar quando se vê o medo. O pânico nos traz de volta à “pré-moral” do Estado.
Cantor terá de enfrentar um dilema moral que irá testar a sua integridade quando oferecem a ele um trabalho longe do foco da epidemia, pois terá de abandonar seus alunos. Ele será obrigado a escolher e determinar se vai viver de acordo com suas exigências morais ou sucumbir ao apelo de seu destino.
Philip Roth não fugiu do desafio de enfrentar mais uma vez a bondade presumida de Deus. Se Deus é bom e onipotente, por que ele permite a morte de inocentes? Cantor acredita que Deus age como uma velha estúpida e cruel.
“Nêmesis” é um romance extraordinário, onde se vê o talento de Roth como um contador de histórias e seu compromisso com os grandes temas da literatura: o ser humano, a morte, Deus, o mal, o irracional, a tensão entre o indivíduo e a comunidade, a crueldade da sociedade americana onde o “mal” parece ser uma presença permanente. Seria absurdo procurar esperança nestas páginas. Philip Roth não tinha a intenção de desenhar uma fábula moral. Simplesmente, ele mostra a tremenda vulnerabilidade dos seres humanos. No final, todos fracassam na mesma infelicidade.
Trad. Jorio Dauster/Cia das Letra
sábado, 24 de setembro de 2011
outras linguagens
http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM1628585-7823-SAIBA+COMO+O+CINEMA+O+TEATRO+E+A+MUSICA+SE+RELACIONAM+COM+A+LITERATURA,00.html
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