A literatura pode “cantar” lugares belos, inventar paisagens e compor memórias universais. “Literaturas”, como a de Fábio Mandingo, podem “gritar” lugares da cidade onde quase nunca se chega. E podem “chorar” as mazelas dos homens dessas cidades invisíveis. As paisagens que ninguém quer ver.
É assim que “Salvador Negro Rancor” contradiz a Salvador alegre e harmoniosa feita para turista ver. Fábio Mandingo, jovem escritor baiano, nasceu em Santo Amaro e cresceu nas periferias de Salvador.
Com a sua escrita, ele decide fazer denúncias, revelar o canto calado e colocar a pele negra e pobre sob discussão. Foi, ironicamente, lançado longe de Salvador. Encontrei-o por acaso, numa livraria paulista, numa noite movimentada, autografando e fazendo leituras de seu livro. Leitura que emocionou-me e despertou-me a curiosidade, já que ele, no momento em que cheguei à livraria, lia um conto sobre o carnaval com uma linguagem ritmada de forma diferente e com uma ironia refinada, construída com as gírias e vocábulos que pensamos esconder belezas.
“Descoberto” pelo “Ciclo Contínuo de Literaturas” do projeto VAI, apoiado pela prefeitura de São Paulo, cidade de tantos nordestinos, Fábio leva a Bahia contemporânea sob outro olhar e vai expondo as fotografias que só em notícias de jornais aparecem.
Mas não é sem qualidade literária ou poesia. Seus contos, que são seis – “Cisco”, “Kaska”, “Pipoca”, “Paulista”, “Por acaso” e “Salvador negro rancor” - vão fazer uma curva de berimbau, cujo arco distribui choros, soluços e risadas em sons particulares que em qualquer parte se reconhece: capoeira, Bahia, Salvador, candomblé, negros.
O berimbau de Fábio, contudo, está longe das batucadas que enfeitam a Bahia. Esse é afinado de outro jeito. Os contos são construídos, na maioria, em terceira pessoa; o narrador é sempre uma personagem irônica e pessimista. A linguagem é a das ruas, cadente, com uma música própria. Essa musicalidade, inclusive, vezes se aproxima do universo Hip Hop que, diferentemente do samba, tem umas “quebras” abruptas que parecem soluçar no descompasso das desigualdades. Essa entrada do Hip Hop na linguagem também acolhe essa mescla de fala e música, um “slam” solto e livre. Com umas expressões e gírias deslocadas, o autor revela seu domínio da pena, sua destreza literária.
As imagens também são elaboradas de forma a estarem coladas na história contada, nas palavras e nos sons, saindo das meras descrições usuais, como no conto Pipoca, Cisco e Paulista. Com exceção de “Kaska” – conto em que o autor brinca com o título colocado entre parêntesis (“Ou um estudo sócio-etnográfico sobre os gringos carentes”) – os contos trazem diálogos que revelam as tensões sociais e raciais existentes na cidade.
O encontro com o outro é sempre discutido, seja esse outro a polícia, o gringo ou o rico. O crack é denunciado, como no conto “Cisco”, mas sem tornar marginal o usuário: esse um vítima das políticas públicas – ou da falta delas – na cidade. Em “Salvador Negro Rancor”, título que dá nome ao livro, o narrador é em primeira pessoa e, apesar do título, ali vê-se amor pela cidade e a cultura baiana. Mas o conto denuncia e, de maneira interessante, a capoeira é trazida para a estrutura do conto, alem de ser o instrumento, o cenário e o meio de de se contar os encontros tensos e constantes com o “outro”, nesse caso, o gringo.
Aliás, “gringos” são alvo constante de Fábio em seus contos. Razão até de análise. Mas é interessante ver como ele observa esses lugares de troca, seja ela pacífica ou violenta. Por alguns contos, há expressões em inglês e muito bem ficam elas no cenário da Salvador “para turista ver” que ninguém enxerga. O nosso português tupiniquim agora de outro jeito, com outras línguas diferentes daquela do momento do Modernismo, mas ainda nesse lugar antropofágico.
O livro de Fábio, prefaciado por Róbson Véio do coletivo Blackitude, merece um forte “Salve”. É um bom começo para esse escritor que, sem medo, faz o seu trajeto até outras cidades para cantar a nossa. Agora o baiano lança também aqui o seu livro. De amor, mais do que de rancor.
Salvador Negro Rancor – Secretaria de Cultura- Prefeitura de São Paulo – 79 p. $15
domingo, 13 de novembro de 2011
Lendo com o coração
Finkielkraut não é um desses críticos reacionários. Ao contrário, é um desses raros estudiosos que se entrega sem medo às letras, desejando ser transformado a fim de compreender a modernidade em perspectiva. Diante da escassez de “leitores complexos”, Alain é um ousado leitor que, contra o espírito da época encarnada pelos caprichos do imediatismo, do entretenimento forçado, ou dos ditames de uma socialização excessiva, inerente ao “progresso das mídias”, acredita na cumplicidade permanente da literatura.
Em sua opinião, o romance não se reduz à produção de ficção, mas é exigido pela inesgotabilidade dos seus discursos para o mundo. O seu encantamento diante do livro vem acompanhado de uma surpresa, talvez a mesma surpresa que o leitor encontra na citação sobre o Rei Salomão no prólogo sobre o título de sua obra: “O Rei Salomão suplicava ao Pai Eterno que lhe desse um coração inteligente. (…) Deus entretanto se cala.”
Sobre a escolha de sua lista para os ensaios, o autor diz que se baseou em sua emoção para a escolha. Assim, em “Um coração inteligente”, a biblioteca ideal do filósofo não é exaustiva. Com nove livros, ele se debruça sobre o espírito literário, interpretando os desequilíbrios entre a existência e a arte; entre a vida e o desejo, a justiça e o sofrimento. Seu caminho literário é "A Festa de Babette, de Karen Blixen, “Tudo passa”, de Vasily Grossman, “História de um alemão”, de Sebastian Haffner, “Lord Jim”, de Joseph Conrad, “Mancha”, de Philiph Roth, “Primeiro homem”, de Albert Camus, “Memórias do subterrâneo”, de Dostoiévski, “Washigton Square”, de Henry James e “A brincadeira”, de Milan Kundera. Todos estes textos promovendo discussão profunda e evidenciando verdades essenciais que podem complementar a faculdade de julgar, o grande mote dos ensaios de Alain Finkielkraut.
Alain vai de Kundera a Conrad para mostrar, com os livros que ele confia, que é capaz de decifrar a sua existência pelo viés literário. Intelectual íntegro, Finkielkraut tem levado a cabo uma sólida e fértil obra ensaística, oferecendo uma severa crítica da deriva experimentada pela noção, ilustrada e racional, de “cultura” na segunda metade do século XX, ao ser modificada pelo que tem sido chamado de “estudos culturais”.
Em seu livro “Um coração inteligente”, ele põe-se todo à serviço da literatura, sem artifícios, mas com um profundo conhecimento e, mais do que nada, uma profunda paixão pela vida, pela democracia e pela arte.
Finkielkraut interessa-se por examinar o trabalho do autor, ir profundamente ali e "em vez de proceder por item, interessa-se em contar uma história." Ele assume o papel de defender a Literatura como o caminho para a informação, tanto no âmbito pessoal quanto num escopo universal. Sem a literatura “as leis da vida são apenas uma lista de idéias conhecidas, mas sem jurisprudência”.
Essa literatura que valoriza Finkielkraut cura a arrogância. Ele oferece um remédio para figuras esquecidas, deixadas às margens da história. De fato, como dito no prólogo, “Um coração inteligente” é um conjunto de ensaios sobre romances e leitores. É a reivindicação da literatura como ciência social. E o autor ainda consegue ser modesto neste livro fascinante. São nove histórias e nove formas de “rever” o mundo. Com a literatura e com o coração “inteligente”.
Um coração inteligente/ Civilização Brasileira/238p./R$ 37,00.
Em sua opinião, o romance não se reduz à produção de ficção, mas é exigido pela inesgotabilidade dos seus discursos para o mundo. O seu encantamento diante do livro vem acompanhado de uma surpresa, talvez a mesma surpresa que o leitor encontra na citação sobre o Rei Salomão no prólogo sobre o título de sua obra: “O Rei Salomão suplicava ao Pai Eterno que lhe desse um coração inteligente. (…) Deus entretanto se cala.”
Sobre a escolha de sua lista para os ensaios, o autor diz que se baseou em sua emoção para a escolha. Assim, em “Um coração inteligente”, a biblioteca ideal do filósofo não é exaustiva. Com nove livros, ele se debruça sobre o espírito literário, interpretando os desequilíbrios entre a existência e a arte; entre a vida e o desejo, a justiça e o sofrimento. Seu caminho literário é "A Festa de Babette, de Karen Blixen, “Tudo passa”, de Vasily Grossman, “História de um alemão”, de Sebastian Haffner, “Lord Jim”, de Joseph Conrad, “Mancha”, de Philiph Roth, “Primeiro homem”, de Albert Camus, “Memórias do subterrâneo”, de Dostoiévski, “Washigton Square”, de Henry James e “A brincadeira”, de Milan Kundera. Todos estes textos promovendo discussão profunda e evidenciando verdades essenciais que podem complementar a faculdade de julgar, o grande mote dos ensaios de Alain Finkielkraut.
Alain vai de Kundera a Conrad para mostrar, com os livros que ele confia, que é capaz de decifrar a sua existência pelo viés literário. Intelectual íntegro, Finkielkraut tem levado a cabo uma sólida e fértil obra ensaística, oferecendo uma severa crítica da deriva experimentada pela noção, ilustrada e racional, de “cultura” na segunda metade do século XX, ao ser modificada pelo que tem sido chamado de “estudos culturais”.
Em seu livro “Um coração inteligente”, ele põe-se todo à serviço da literatura, sem artifícios, mas com um profundo conhecimento e, mais do que nada, uma profunda paixão pela vida, pela democracia e pela arte.
Finkielkraut interessa-se por examinar o trabalho do autor, ir profundamente ali e "em vez de proceder por item, interessa-se em contar uma história." Ele assume o papel de defender a Literatura como o caminho para a informação, tanto no âmbito pessoal quanto num escopo universal. Sem a literatura “as leis da vida são apenas uma lista de idéias conhecidas, mas sem jurisprudência”.
Essa literatura que valoriza Finkielkraut cura a arrogância. Ele oferece um remédio para figuras esquecidas, deixadas às margens da história. De fato, como dito no prólogo, “Um coração inteligente” é um conjunto de ensaios sobre romances e leitores. É a reivindicação da literatura como ciência social. E o autor ainda consegue ser modesto neste livro fascinante. São nove histórias e nove formas de “rever” o mundo. Com a literatura e com o coração “inteligente”.
Um coração inteligente/ Civilização Brasileira/238p./R$ 37,00.
Compre um minuto de dança!
Aparentemente, não tenho nada a ver com dança e quando me atrevo a escrever sobre isso é sempre partindo da idéia de que o texto é algo para além da palavra escrita, com signos verbais, não-verbais, movimentos, estados, experiências que promovem sentidos “narráveis”. É assim que não me furto a falar de dança, de cinema, de música, de arte. Mas é ainda mais como “consumidora” que esse texto me vem.
Em princípio, fui para ver um espetáculo de “dança contemporânea” na abertura do “Quarta que dança” – um merecido espaço para os profissionais da dança e para os que gostam de assistir a essa arte, mas não encontram muitas oportunidades na cidade - contudo, encontrei, digamos, outro “produto” lá. Encontrei uma proposta interativa que incluía a dança.
“Compre um minuto de dança”. Esse foi o apelo da dupla de dançarinos do grupo Núcleo B no espetáculo “Mercado Livre”. O trabalho é uma híbrida composição que envolve técnicas de dramaturgia, dança, performance, instalação e “talk show”. Há um figurino disponibilizado em uma arara no palco, um “menu” de músicas e dois dançarinos. O público que quiser “comprar” um minuto de dança, vai lá, escolhe o figurino, o bailarino, a música.
A proposta é interessante, sobretudo porque o público se vê envolvido em algo que parece distante dele: a composição de uma cena. Também pela crítica bem humorada do consumo - ou não consumo - da arte e da mercantilização do corpo.
Bel Sousa e Roberto Basílio se esforçam para fazer o público comprar um minuto de dança, como se estivessem numa loja oferecendo promoções relâmpagos ou numa feira vendendo seus produtos. “Qualquer coisa” pode pagar esse minutinho de dança, é só o público se disponibilizar a sair de suas poltronas para isso acontecer. O primeiro a ser escolhido é a música e, no “cardápio”, há Arnaldo Antunes, Beirut, Mozart, Metallica, Olodum, Sidney Magal, Rihana, Café Tacuba, Roberto Carlos, Beyonceé, Tahaikovsky, e muitos outros, de estilos os mais diversos possíveis, pop, brega, rock e clássico. E a “dança” oferecida sempre irônica, desconstruindo os lugares, brincando com os estilos.
O figurino também tem peças de variados estilos, mas exploraram pouco o vestuário masculino.
A brincadeira é divertida, confesso. Até eu me senti animada para ir lá “comprar” uma dança. A platéia se vê, pouco a pouco, cativada pelo lúdico da ação e interessada na crítica que se insinua à nossa confusa sociedade consumista – nem sempre consumindo arte.
O problema é que a proposta acaba falhando por não conseguir chamar a nossa atenção pela dança propriamente dita. Por ser muito rápido cada “quadro”, e parte do tempo ser utilizado na “interpretação” do texto-música, o que sobra de dança nisso aí é pouco e, além disso, há uma repetição dos mesmos movimentos em músicas diferentes, com os bailarinos arriscando muito pouco no desenvolvimento da criatividade em cena.
Apesar de poder ver que há técnica, é ainda frágil a abordagem da dança, não sendo ruim, apenas pouco explorado o potencial da dupla. E imagino que parte disso é justamente a junção de linguagens diferentes sem o tempo necessário para amadurecer esteticamente o trabalho.
No improviso teatral também acaba por faltar mais “texto”, mais exploração da própria idéia do mercado que eles levaram (gostei muito de quando eles falaram sobre comprar um livro e não se poder comprar uma dança, por exemplo, mas no geral se repete muito o apelo da compra da dança sem maiores referências ) embora haja domínio de palco por parte deles.
Quem se dispõe a fazer algo assim, sabe muito bem o quanto de dificuldades vai encontrar. É realmente um desafio equilibrar as diferentes técnicas necessárias para um espetáculo interativo e de multilinguagens artísticas. É preciso, portanto, trabalhar bastante, respeitar mais o tempo que se pede para amadurecer o trabalho, tanto esteticamente quanto tecnicamente.
Mas cada momento ali é único, assim que as demais apresentações que o grupo fará, merecem ser conferidas pelo público, tanto adulto quanto infantil. É divertido, é interessante. Aliás, aqueles que gostam de dança devem experimentar ir aos espetáculos do “Quarta que dança”. Custa apenas dois reais a entrada e é oferecida uma variedade de estilos de dança. O “Quarta que dança” é um projeto que sai de Salvador para mais duas cidades, Paulo Afonso e Juazeiro, contudo, espero que seja ampliado para outras cidades do interior do Estado, tão carente de projetos artísticos dessa qualidade e acessibilidade.
Na estréia deste ano, um espetáculo que tem menos dança, mas ainda assim oportuno para dar a cara do projeto: artistas e público convidados para festejar, prestigiar, descobrir a dança feita por gente de nosso Estado.O Núcleo B tem grande mérito na composição do trabalho de estréia e trouxe uma proposta de fato interessante. Espero vê-los em algum outro espetáculo, dançando mais, explorando mais suas técnicas, seus talentos, seu potencial. Vendendo a dança por essa cidade que, apesar de tanto movimento, andava precisando de bons espetáculos.
Em princípio, fui para ver um espetáculo de “dança contemporânea” na abertura do “Quarta que dança” – um merecido espaço para os profissionais da dança e para os que gostam de assistir a essa arte, mas não encontram muitas oportunidades na cidade - contudo, encontrei, digamos, outro “produto” lá. Encontrei uma proposta interativa que incluía a dança.
“Compre um minuto de dança”. Esse foi o apelo da dupla de dançarinos do grupo Núcleo B no espetáculo “Mercado Livre”. O trabalho é uma híbrida composição que envolve técnicas de dramaturgia, dança, performance, instalação e “talk show”. Há um figurino disponibilizado em uma arara no palco, um “menu” de músicas e dois dançarinos. O público que quiser “comprar” um minuto de dança, vai lá, escolhe o figurino, o bailarino, a música.
A proposta é interessante, sobretudo porque o público se vê envolvido em algo que parece distante dele: a composição de uma cena. Também pela crítica bem humorada do consumo - ou não consumo - da arte e da mercantilização do corpo.
Bel Sousa e Roberto Basílio se esforçam para fazer o público comprar um minuto de dança, como se estivessem numa loja oferecendo promoções relâmpagos ou numa feira vendendo seus produtos. “Qualquer coisa” pode pagar esse minutinho de dança, é só o público se disponibilizar a sair de suas poltronas para isso acontecer. O primeiro a ser escolhido é a música e, no “cardápio”, há Arnaldo Antunes, Beirut, Mozart, Metallica, Olodum, Sidney Magal, Rihana, Café Tacuba, Roberto Carlos, Beyonceé, Tahaikovsky, e muitos outros, de estilos os mais diversos possíveis, pop, brega, rock e clássico. E a “dança” oferecida sempre irônica, desconstruindo os lugares, brincando com os estilos.
O figurino também tem peças de variados estilos, mas exploraram pouco o vestuário masculino.
A brincadeira é divertida, confesso. Até eu me senti animada para ir lá “comprar” uma dança. A platéia se vê, pouco a pouco, cativada pelo lúdico da ação e interessada na crítica que se insinua à nossa confusa sociedade consumista – nem sempre consumindo arte.
O problema é que a proposta acaba falhando por não conseguir chamar a nossa atenção pela dança propriamente dita. Por ser muito rápido cada “quadro”, e parte do tempo ser utilizado na “interpretação” do texto-música, o que sobra de dança nisso aí é pouco e, além disso, há uma repetição dos mesmos movimentos em músicas diferentes, com os bailarinos arriscando muito pouco no desenvolvimento da criatividade em cena.
Apesar de poder ver que há técnica, é ainda frágil a abordagem da dança, não sendo ruim, apenas pouco explorado o potencial da dupla. E imagino que parte disso é justamente a junção de linguagens diferentes sem o tempo necessário para amadurecer esteticamente o trabalho.
No improviso teatral também acaba por faltar mais “texto”, mais exploração da própria idéia do mercado que eles levaram (gostei muito de quando eles falaram sobre comprar um livro e não se poder comprar uma dança, por exemplo, mas no geral se repete muito o apelo da compra da dança sem maiores referências ) embora haja domínio de palco por parte deles.
Quem se dispõe a fazer algo assim, sabe muito bem o quanto de dificuldades vai encontrar. É realmente um desafio equilibrar as diferentes técnicas necessárias para um espetáculo interativo e de multilinguagens artísticas. É preciso, portanto, trabalhar bastante, respeitar mais o tempo que se pede para amadurecer o trabalho, tanto esteticamente quanto tecnicamente.
Mas cada momento ali é único, assim que as demais apresentações que o grupo fará, merecem ser conferidas pelo público, tanto adulto quanto infantil. É divertido, é interessante. Aliás, aqueles que gostam de dança devem experimentar ir aos espetáculos do “Quarta que dança”. Custa apenas dois reais a entrada e é oferecida uma variedade de estilos de dança. O “Quarta que dança” é um projeto que sai de Salvador para mais duas cidades, Paulo Afonso e Juazeiro, contudo, espero que seja ampliado para outras cidades do interior do Estado, tão carente de projetos artísticos dessa qualidade e acessibilidade.
Na estréia deste ano, um espetáculo que tem menos dança, mas ainda assim oportuno para dar a cara do projeto: artistas e público convidados para festejar, prestigiar, descobrir a dança feita por gente de nosso Estado.O Núcleo B tem grande mérito na composição do trabalho de estréia e trouxe uma proposta de fato interessante. Espero vê-los em algum outro espetáculo, dançando mais, explorando mais suas técnicas, seus talentos, seu potencial. Vendendo a dança por essa cidade que, apesar de tanto movimento, andava precisando de bons espetáculos.
Mistérios, anjos e bagunças
O mundo, como está, é confuso para nós, que dirá para os pequenos. Mas é neles que temos de investir em se tratando de aguçar a fantasia, despertar o desejo de sonhar, estimular o prazer de ler.
Falamos de crise na leitura, cada vez mais sendo substituído o livro pelas mídias, pelo cinema. É tudo muito bem-vindo, quando com qualidade, estética interessante, histórias emocionantes e divertidas. A convivência de todas as formas de textos, do oral ao escrito, passando pelo iconográfico, é interessante e importante. Apenas não queremos que o livro saia de cena; há ainda nesse suporte o encanto milenar de virar páginas, descobrir o segredo das palavras, jogar com sentidos como se joga com brinquedos.
A literatura para os pequenos tem sido sempre algo especial, grandes escritores universais e brasileiros- de Esopo e La Fontaine a Chrales Dickens, dos irmãos Grimm a Maurice Sendak, de Julio Verne e seus livros de aventura a Ana Maria Machado e Lygia Bojunga, de Marina Colasanti a Sérgio Vaz e Ferrez, passando por Clarice e sua galinha, Cidinha da Silva, Glaucia Lemos, Ruy Espinheira, Antonio Torres, Jorge Amado, enfim, de escritores locais aos mundiais, temos o lúdico, a fantasia, a poesia e a aventura presentes na nossa memória da infância, acrescentando-se aí os contos das avós em rodas de quintais.
Mas não é fácil escrever para eles, os pequenos. Cleise Mendes – dramaturga, escritora - e Paulo Rufino- que ainda não havia ilustrado para os pequenos- num gesto de carinho, juntaram-se para trazer “Gabriel e o anjo da bagunça”, lançado há pouco tempo pela Camurê publicações, num projeto do banco Capital, com a coordenação de conteúdo feita por Lena Lois.
A história de Gabriel, um menino que é surpreendido com uma bagunça tão bagunçada que ele mesmo se espanta, é um texto aparentemente simples, mas complexo em sua idéia: entre descobrir e pensar nos mistérios do cotidiano de uma criança, a personagem se embrenha por um mundo de fantasia, de aprendizado, de controle de medos infantis, de descobertas.
O texto apresenta diálogos e narração, além das ilustrações de Rufino. Como eu disse, é difícil escrever para crianças, decidir sobre adequação de linguagem, estrutura, tamanho, tipos de desenhos e técnicas. O livro é bonito, mas em certo momento fica difícil decidir para que idade ele é destinado, tem mais texto do que o comum para uma criança muito pequena, e ao mesmo tempo a escolha do vocabulário e a economia de metáforas são acertadas para os menores.
A opção pelas frases literais e uma certa objetividade por um lado é interessante em se pensando que não devemos subestimar o alcance das crianças, mas também acaba por, a depender de quem lê, deixar a história mais ligada ao real do que ‘a fantasia. Isso, claro, é equilibrado com as possibilidades fantásticas no quarto da criança.
Os diálogos começam a ficar mais interessantes no meio do livro, a autora parece soltar-se mais e ela própria passa a viver tudo com Gabriel. Da mesma forma, os desenhos começam muito na tradicional ilustração do texto; só em certos momentos deixando que a imagem seja o prolongamento do mesmo, seu complemento.
A técnica do artista é boa, ele se dedica ao trabalho com seriedade e cuidado. As ilustrações imitam a textura do material escolhido, o giz de cera, o lápis de cor sobre papel. É gostoso perceber a textura sugerida ali. E o papel, como o design gráfico do livro, foi feito cuidadosamente. Gostei mais das ilustrações que também “se soltaram naquele quarto”, naquela fantasia, como a dos fantasmas, a das cortinas voando, a do sol, do avião... a do sapo eu dispensaria.
Cleise Mendes respeita os pequenos, trata de deixar ali a sua mensagem: eles devem ser livres em sua fantasia e sentire-se seguros para resolver seus mistérios e medos. As crianças, como Gabriel, podem descobrir a si mesmos e sobre o mundo enquanto se deparam com o inesperado, com a surpresa, com as suas angústias. Vão aprendendo a ser responsáveis. E tudo isso com muita traquinagem e bagunça, amigos invisíveis, mistérios e bichos de estimação. A autora também insere, implicitamente, a relação dos adultos ali e os limites entre verdade e fantasia.
É um texto que traz um menino comum de uma família em “situação normal”. Gosto de que Gabriel seja uma criança que, sendo negra na história, também podia ou pode ser branca, mulata, misturada. Um projeto interessante nessa difícil – e bota difícil nisso – tarefa de escrever para crianças.
Falamos de crise na leitura, cada vez mais sendo substituído o livro pelas mídias, pelo cinema. É tudo muito bem-vindo, quando com qualidade, estética interessante, histórias emocionantes e divertidas. A convivência de todas as formas de textos, do oral ao escrito, passando pelo iconográfico, é interessante e importante. Apenas não queremos que o livro saia de cena; há ainda nesse suporte o encanto milenar de virar páginas, descobrir o segredo das palavras, jogar com sentidos como se joga com brinquedos.
A literatura para os pequenos tem sido sempre algo especial, grandes escritores universais e brasileiros- de Esopo e La Fontaine a Chrales Dickens, dos irmãos Grimm a Maurice Sendak, de Julio Verne e seus livros de aventura a Ana Maria Machado e Lygia Bojunga, de Marina Colasanti a Sérgio Vaz e Ferrez, passando por Clarice e sua galinha, Cidinha da Silva, Glaucia Lemos, Ruy Espinheira, Antonio Torres, Jorge Amado, enfim, de escritores locais aos mundiais, temos o lúdico, a fantasia, a poesia e a aventura presentes na nossa memória da infância, acrescentando-se aí os contos das avós em rodas de quintais.
Mas não é fácil escrever para eles, os pequenos. Cleise Mendes – dramaturga, escritora - e Paulo Rufino- que ainda não havia ilustrado para os pequenos- num gesto de carinho, juntaram-se para trazer “Gabriel e o anjo da bagunça”, lançado há pouco tempo pela Camurê publicações, num projeto do banco Capital, com a coordenação de conteúdo feita por Lena Lois.
A história de Gabriel, um menino que é surpreendido com uma bagunça tão bagunçada que ele mesmo se espanta, é um texto aparentemente simples, mas complexo em sua idéia: entre descobrir e pensar nos mistérios do cotidiano de uma criança, a personagem se embrenha por um mundo de fantasia, de aprendizado, de controle de medos infantis, de descobertas.
O texto apresenta diálogos e narração, além das ilustrações de Rufino. Como eu disse, é difícil escrever para crianças, decidir sobre adequação de linguagem, estrutura, tamanho, tipos de desenhos e técnicas. O livro é bonito, mas em certo momento fica difícil decidir para que idade ele é destinado, tem mais texto do que o comum para uma criança muito pequena, e ao mesmo tempo a escolha do vocabulário e a economia de metáforas são acertadas para os menores.
A opção pelas frases literais e uma certa objetividade por um lado é interessante em se pensando que não devemos subestimar o alcance das crianças, mas também acaba por, a depender de quem lê, deixar a história mais ligada ao real do que ‘a fantasia. Isso, claro, é equilibrado com as possibilidades fantásticas no quarto da criança.
Os diálogos começam a ficar mais interessantes no meio do livro, a autora parece soltar-se mais e ela própria passa a viver tudo com Gabriel. Da mesma forma, os desenhos começam muito na tradicional ilustração do texto; só em certos momentos deixando que a imagem seja o prolongamento do mesmo, seu complemento.
A técnica do artista é boa, ele se dedica ao trabalho com seriedade e cuidado. As ilustrações imitam a textura do material escolhido, o giz de cera, o lápis de cor sobre papel. É gostoso perceber a textura sugerida ali. E o papel, como o design gráfico do livro, foi feito cuidadosamente. Gostei mais das ilustrações que também “se soltaram naquele quarto”, naquela fantasia, como a dos fantasmas, a das cortinas voando, a do sol, do avião... a do sapo eu dispensaria.
Cleise Mendes respeita os pequenos, trata de deixar ali a sua mensagem: eles devem ser livres em sua fantasia e sentire-se seguros para resolver seus mistérios e medos. As crianças, como Gabriel, podem descobrir a si mesmos e sobre o mundo enquanto se deparam com o inesperado, com a surpresa, com as suas angústias. Vão aprendendo a ser responsáveis. E tudo isso com muita traquinagem e bagunça, amigos invisíveis, mistérios e bichos de estimação. A autora também insere, implicitamente, a relação dos adultos ali e os limites entre verdade e fantasia.
É um texto que traz um menino comum de uma família em “situação normal”. Gosto de que Gabriel seja uma criança que, sendo negra na história, também podia ou pode ser branca, mulata, misturada. Um projeto interessante nessa difícil – e bota difícil nisso – tarefa de escrever para crianças.
Por trás da burca, a força das mulheres
Ayaan Hirsi Ali transformou-se num símbolo da luta feminina contra a opressão nos países islâmicos. Em “Nômade”, ela volta a colocar a sua experiência num relato pessoal, uma espécie de romance-diário, no qual continua a contar a sua trajetória.
Agora, a autora tece a sua narrativa ao redor do eixo familiar. É contando sobre o seu pai, irmãs, primos, avós, mãe, família que ela classifica no livro como “problemática”, que ela aborda o Islamismo, um meio de vida mais do que uma crença.
Falando também de sexo, dinheiro e violência, Ayaan vai abordando a diferença entre o mundo muçulmano e o ocidental, destacando a oposição entre o sistema democrático e o teocrático, alvo de sua crítica e rancor.
“A burca deveria ser o ponto de partida para um debate mais amplo: a maneira de viver das pessoas em geral”. Afirma no livro. Ayaan Hirsi nasceu na Somália em 1969 e recebeu uma educação islâmica ortodoxa e radical, tendo sofrido mutilação vaginal, uma experiência traumática e dolorosa, conforme relatou em seu primeiro livro. Com apenas 22 anos, ela conseguiu fugir para a Holanda, escapando de um casamento arranjado por seu pai. Foi nesse país - que ela afirma adorar e diz ter sido o lugar em que mais foi feliz, que ela estudou, formou-se em Ciências Políticas e tornou-se membro do parlamento holandês.
A sua luta contra a opressão e a submissão feminina, assim como as críticas ferozes ao Islã, a levou a deputada em 2003 naquele país, antes de ser acusada de perder a sua residência holandesa e ver-se obrigada a ir viver nos Estados Unidos. Mas, antes disso, foi ameaçada de morte pelos fundamentalistas islâmicos e passou a ser acompanhada de guarda-costas depois de ter seu amigo, que dirigiu um filme sobre a sua vida, assassinado.
Ela costuma comparar os sistemas para mostrar os abusos e o fanatismo dos fundamentalistas islâmicos: “O nível de separação entre Igreja e estado é totalmente diferente. Para que isso também aconteça no Islã, depende apenas dos muçulmanos”. Em sua opinião, os grupos radicais do norte da África, ao colocarem a prática radical da religião acima de tudo, violam os direitos humanos.
As suas críticas, expressas no livro, alcançam também a benevolência dos países ocidentais com os imigrantes. Nesse sentido, destaca que é muito importante que a cultura de acolhida exija que as pessoas, além de aprenderem o idioma, aceitem os sistemas de valores. Em sua opinião, os países europeus que são muito “compreensivos” com as diferenças culturais e religiosas, acabam incentivando hábitos que prejudicam a mulher, que pode, por exemplo, morar na França ou na Inglaterra e continuar a usar a burca e a ser controlada por seus pais e maridos.
Com relação à violência de gênero, Ayaan destaca que não é só no Islã, mas em todos os âmbitos e sistemas. Ela destaca as diferenças entre europeus e orientais e, de forma aberta, elege como mais saudável a liberdade do ocidente.
O livro não traz nada de especial em se tratando de estilo; a linguagem é direta, quase jornalística, e a autora acaba sendo muito repetitiva em relação a alguns fatos e reflexões. Mas não se pode negar que é um relato corajoso e lúcido. A autora, que se denomina feminista, leva a luta feminina para além das relações homem e mulher e mostra como um sistema religioso misógino pode ser cruel.
Suas análise dos símbolos de sua cultura são instigantes porque ultrapassam oposições mínimas e se tornam complexas no contexto histórico: “A burca simboliza a tradição, é certo, mas seu significado é o do controle da sexualidade. Indica que a mulher que fique em casa, e revela o homem como incapaz de controlar seus instintos sexuais. Isso é o que inculcam os islâmicos radicais às pessoas.”
Hirsi Ali vive hoje nos Estados Unidos e criou uma Fundação em seu nome, através da qual defende os direitos das mulheres no ocidente diante do islamismo radical. Milita em várias frentes e afirma que “o multiculturalismo como se entende hoje é um fracasso”.
Nômade/ Cia das Letras/388p.
Agora, a autora tece a sua narrativa ao redor do eixo familiar. É contando sobre o seu pai, irmãs, primos, avós, mãe, família que ela classifica no livro como “problemática”, que ela aborda o Islamismo, um meio de vida mais do que uma crença.
Falando também de sexo, dinheiro e violência, Ayaan vai abordando a diferença entre o mundo muçulmano e o ocidental, destacando a oposição entre o sistema democrático e o teocrático, alvo de sua crítica e rancor.
“A burca deveria ser o ponto de partida para um debate mais amplo: a maneira de viver das pessoas em geral”. Afirma no livro. Ayaan Hirsi nasceu na Somália em 1969 e recebeu uma educação islâmica ortodoxa e radical, tendo sofrido mutilação vaginal, uma experiência traumática e dolorosa, conforme relatou em seu primeiro livro. Com apenas 22 anos, ela conseguiu fugir para a Holanda, escapando de um casamento arranjado por seu pai. Foi nesse país - que ela afirma adorar e diz ter sido o lugar em que mais foi feliz, que ela estudou, formou-se em Ciências Políticas e tornou-se membro do parlamento holandês.
A sua luta contra a opressão e a submissão feminina, assim como as críticas ferozes ao Islã, a levou a deputada em 2003 naquele país, antes de ser acusada de perder a sua residência holandesa e ver-se obrigada a ir viver nos Estados Unidos. Mas, antes disso, foi ameaçada de morte pelos fundamentalistas islâmicos e passou a ser acompanhada de guarda-costas depois de ter seu amigo, que dirigiu um filme sobre a sua vida, assassinado.
Ela costuma comparar os sistemas para mostrar os abusos e o fanatismo dos fundamentalistas islâmicos: “O nível de separação entre Igreja e estado é totalmente diferente. Para que isso também aconteça no Islã, depende apenas dos muçulmanos”. Em sua opinião, os grupos radicais do norte da África, ao colocarem a prática radical da religião acima de tudo, violam os direitos humanos.
As suas críticas, expressas no livro, alcançam também a benevolência dos países ocidentais com os imigrantes. Nesse sentido, destaca que é muito importante que a cultura de acolhida exija que as pessoas, além de aprenderem o idioma, aceitem os sistemas de valores. Em sua opinião, os países europeus que são muito “compreensivos” com as diferenças culturais e religiosas, acabam incentivando hábitos que prejudicam a mulher, que pode, por exemplo, morar na França ou na Inglaterra e continuar a usar a burca e a ser controlada por seus pais e maridos.
Com relação à violência de gênero, Ayaan destaca que não é só no Islã, mas em todos os âmbitos e sistemas. Ela destaca as diferenças entre europeus e orientais e, de forma aberta, elege como mais saudável a liberdade do ocidente.
O livro não traz nada de especial em se tratando de estilo; a linguagem é direta, quase jornalística, e a autora acaba sendo muito repetitiva em relação a alguns fatos e reflexões. Mas não se pode negar que é um relato corajoso e lúcido. A autora, que se denomina feminista, leva a luta feminina para além das relações homem e mulher e mostra como um sistema religioso misógino pode ser cruel.
Suas análise dos símbolos de sua cultura são instigantes porque ultrapassam oposições mínimas e se tornam complexas no contexto histórico: “A burca simboliza a tradição, é certo, mas seu significado é o do controle da sexualidade. Indica que a mulher que fique em casa, e revela o homem como incapaz de controlar seus instintos sexuais. Isso é o que inculcam os islâmicos radicais às pessoas.”
Hirsi Ali vive hoje nos Estados Unidos e criou uma Fundação em seu nome, através da qual defende os direitos das mulheres no ocidente diante do islamismo radical. Milita em várias frentes e afirma que “o multiculturalismo como se entende hoje é um fracasso”.
Nômade/ Cia das Letras/388p.
O “Xão” de palavras de Ondjaki
O jovem escritor angolano Ondjaki é um dos mais premiados de sua geração. A sua obra é mesclada: prosa e poesia seguem equilibrando-se na pena do escritor. Para além disso, vez por outra ele arrisca de fotógrafo, ator, cineasta.
Gosto de saber que entre todas as artes e linguagens, há a curiosidade exagerada pela palavra, seja a que dá forma às suas narrativas, seja a que suspende poesia do “xão”.
Ondjaki trocou cartas com o poeta Manoel de Barros. Entre eles, surpresas e palavras que caminham de uma pátria a outra, de uma alma a outra.
Em “Há prendisajens com o xão” a poesia das palavras tanto é oferecida em poemas como em textos curtos, narrativas condensadas, como a série das “estórias”. Nesses textos, dedicados a personagens da memória do escritor, há a interação da tradição oral com o lugar da palavra que tenta dar ao leitor, de certa forma, o lugar central, ainda que organizado pelas metáforas que revelam-escondem paradoxos, como o suspeito verso “um só olhar pode ser uma voz não dita”, do poema “Que sabes tu do Eco do silêncio?” dedicado a também poeta Paula Tavares.
Essa experiência tem estado presente na obra do escritor, que tem trazido ironias e desconstruções em grande parte de sua escrita, reclamando e refletindo o lugar político pós-colonial de sujeitos angolanos.
Ligando as partes do livro - “poemas” e “estórias”- uma invisível ponte erguida sobre o sentido das palavras. É nisso a maior beleza de muitos dos poemas, como “Penúltima vivência”: quero só/o silêncio da vela./o afogar-me/ na temperatura/ da cera./quero só/ o silêncio de volta:/infinituar-me/em poros que hajam/num chão de ser cera.
A linguagem também obedece seus princípios ali, nos poemas e nas “estórias”; as minúsculas e a pontuação experimental funcionam bem na dimensão visual e no ritmo das frases, dos versos.
Há também um compêndio colecionável: Na “Aterminação”, os convidados especiais aparecem brilhantemente: “Bichos convidados de A a Z, onde a ironia e as combinações tanto trazem o jogo especial da poesia, quanto a ludicidade também verificada em Manoel de Barros, ainda que com outros segredos. Uma das entradas que gosto é “grilo”: pastor de estrelas. embalador de noites. de tanto grilar seus sons, conhece cada curva de um silêncio. bichinho quase inencontrável de dia.
Tem também “Outros convidados ou descoisas de Z a A”, onde encontrei “quintal”: sítio onde cabe um grilo, um universo, um chão, uma algibeira de silêncios, uma estrela grilada ou todo um infinito inacabado.
O livro é assim: palavras, paisagem, homem, sentimento e coisas parecem ser feitas da mesma matéria: a poesia da própria palavra. Uma leitura que traz Manoel de Barros e as “descoisas” de outras paragens, talvez mais de Angola, mas também dos mares todos, e nem me surpreende que o meu inconsciente me traga o Saramago quando leio: “madeira”: sem ela não se fazem nascer jangadas.
Gosto de saber que entre todas as artes e linguagens, há a curiosidade exagerada pela palavra, seja a que dá forma às suas narrativas, seja a que suspende poesia do “xão”.
Ondjaki trocou cartas com o poeta Manoel de Barros. Entre eles, surpresas e palavras que caminham de uma pátria a outra, de uma alma a outra.
Em “Há prendisajens com o xão” a poesia das palavras tanto é oferecida em poemas como em textos curtos, narrativas condensadas, como a série das “estórias”. Nesses textos, dedicados a personagens da memória do escritor, há a interação da tradição oral com o lugar da palavra que tenta dar ao leitor, de certa forma, o lugar central, ainda que organizado pelas metáforas que revelam-escondem paradoxos, como o suspeito verso “um só olhar pode ser uma voz não dita”, do poema “Que sabes tu do Eco do silêncio?” dedicado a também poeta Paula Tavares.
Essa experiência tem estado presente na obra do escritor, que tem trazido ironias e desconstruções em grande parte de sua escrita, reclamando e refletindo o lugar político pós-colonial de sujeitos angolanos.
Ligando as partes do livro - “poemas” e “estórias”- uma invisível ponte erguida sobre o sentido das palavras. É nisso a maior beleza de muitos dos poemas, como “Penúltima vivência”: quero só/o silêncio da vela./o afogar-me/ na temperatura/ da cera./quero só/ o silêncio de volta:/infinituar-me/em poros que hajam/num chão de ser cera.
A linguagem também obedece seus princípios ali, nos poemas e nas “estórias”; as minúsculas e a pontuação experimental funcionam bem na dimensão visual e no ritmo das frases, dos versos.
Há também um compêndio colecionável: Na “Aterminação”, os convidados especiais aparecem brilhantemente: “Bichos convidados de A a Z, onde a ironia e as combinações tanto trazem o jogo especial da poesia, quanto a ludicidade também verificada em Manoel de Barros, ainda que com outros segredos. Uma das entradas que gosto é “grilo”: pastor de estrelas. embalador de noites. de tanto grilar seus sons, conhece cada curva de um silêncio. bichinho quase inencontrável de dia.
Tem também “Outros convidados ou descoisas de Z a A”, onde encontrei “quintal”: sítio onde cabe um grilo, um universo, um chão, uma algibeira de silêncios, uma estrela grilada ou todo um infinito inacabado.
O livro é assim: palavras, paisagem, homem, sentimento e coisas parecem ser feitas da mesma matéria: a poesia da própria palavra. Uma leitura que traz Manoel de Barros e as “descoisas” de outras paragens, talvez mais de Angola, mas também dos mares todos, e nem me surpreende que o meu inconsciente me traga o Saramago quando leio: “madeira”: sem ela não se fazem nascer jangadas.
O carro amarelo da infância
O livro “Três Infâncias”, de Mayrant Gallo, reúne três histórias sobre a infância, sobre o tempo e sobre as descobertas da vida em meio à aridez das dores, das perdas, das faltas.
Quando vi, na capa, a imagem de três balões, pensei no belo filme de Albert Lamorisse - um clássico sobre a infância- “O balão vermelho”.
No belo filme de Lamorisse, a paisagem parisiense pálida, do pós guerra, é invadida pelas cores dos balões que, como se fossem vivos, fazem a reclamação da infância, trazem o lirismo e a fantasia para a hostilidade da órfã infância européia.
Curiosamente, algo da crueldade que há naquele filme- por mais que seja lírico e belo- também pode ser visto nas histórias de Mayrant: há qualquer coisa de cruel em ser criança e ter de deixar de ser, mas há também maldades outras: um filho órfão de mãe vendo o seu pai ser humilhado ao cobrar de um engenheiro o dinheiro devido; a fome e a pobreza que fazem com que a bicicleta de um filho seja vendida para ter um pouco de comida; o vazio de uma cidade de risos infantis depois de um ataque aéreo; a terna despedida da infância que não vai voltar.
A novela “Moinhos”, que ganhou o prêmio Literatura para Todos, do MEC, em 2009, traz capítulos construídos engenhosamente; palavras pensadas e lapidadas para se chegar ao sentimento do narrador, o filho que um dia acompanhou seu pai pela vida, vendo-o sofrer a humilhação de ir cobrar o dinheiro que lhe é devido a um engenheiro que jamais paga a dívida.
Entre a penúria, os fiados no armazém, a entrada clandestina no trem, há a esperança curiosa de qualquer alívio com a presença da “loura”. É essa mulher, sensual, misteriosa, quiçá até doce, que trará de algum lugar do futuro a memória daquele filho que arrasta seu pai pela vida. E é ela também que dará a ilusão de que a desgraça se vai acabar. Mas ficará tudo ainda pior.
O conto é duro e terno. As frases permitem uma linha de ação contínua, que sai da memória e se torna presente no movimento desse narrador que recupera detalhes de si mesmo ao localizar seu pai: reduto de sua infância, prova absurda de sua própria dor. Não há filho sem pai. Há lapsos, quem sabe se do escritor, que intrigam, ou que fragilizam em certa medida, o precioso da história, como a frase “the day after”, que mais parece uma certa insistência do Mayrant Gallo do que do “autor-narrador” que viveu aquela história, um narrador longe disso e perto demais de “no entanto, fui com meu pai. Pela rua e pela vida, lentamente.”
Esses “Moinhos” emocionaram-me profundamente. Da mesma forma que me encantaram as “manchas” de “O ritual no Jardim” e o não poema-canção, o não conto do “romance” “Dias de Garoto”.
Em “O Ritual no Jardim” a meninice sai em burburinhos de histórias de quintal e de avô, no tempo da guerra, de meninas e de meninos que crescem e deixam em jardins as suas infâncias. São contos-capítulos curtos, pincelados de ludicidade, ternura e também segredos. As palavras e frases se movimentam secretamente naqueles espaços exíguos, naquelas manchas de tardes, e vão transformando em homens aqueles sonhos. O cenário de uma outra época não pareceria combinar com as narrativas curtas, contemporâneas, mas é nisso o segredo quase todo: escapolem das memórias de todas as infâncias do ontem ao hoje.
“Dias de Garoto” alcança-nos de outro tempo também, dá até uma certa raiva pensar que tudo nos diz respeito, que essas dores fazem do menino o homem que estraga a vida toda depois. Sonhos de infância.
As cidades, os cenários, são vários, são universais, São Paulo, Rio, um quintal ou um jardim, uma estação de trem de qualquer parte. E o quadrado vazio depois de uma explosão é a nossa história de intriga de gente muito grande: Guerras que ficaram sem sentido por aí.
Um livro com muito sobre esse tempo de brincadeiras e sobre os segredos das gentes crescidas. Belas histórias em narrativas densas.
Três Infâncias/Casarão do verbo/110p/R$24.
Quando vi, na capa, a imagem de três balões, pensei no belo filme de Albert Lamorisse - um clássico sobre a infância- “O balão vermelho”.
No belo filme de Lamorisse, a paisagem parisiense pálida, do pós guerra, é invadida pelas cores dos balões que, como se fossem vivos, fazem a reclamação da infância, trazem o lirismo e a fantasia para a hostilidade da órfã infância européia.
Curiosamente, algo da crueldade que há naquele filme- por mais que seja lírico e belo- também pode ser visto nas histórias de Mayrant: há qualquer coisa de cruel em ser criança e ter de deixar de ser, mas há também maldades outras: um filho órfão de mãe vendo o seu pai ser humilhado ao cobrar de um engenheiro o dinheiro devido; a fome e a pobreza que fazem com que a bicicleta de um filho seja vendida para ter um pouco de comida; o vazio de uma cidade de risos infantis depois de um ataque aéreo; a terna despedida da infância que não vai voltar.
A novela “Moinhos”, que ganhou o prêmio Literatura para Todos, do MEC, em 2009, traz capítulos construídos engenhosamente; palavras pensadas e lapidadas para se chegar ao sentimento do narrador, o filho que um dia acompanhou seu pai pela vida, vendo-o sofrer a humilhação de ir cobrar o dinheiro que lhe é devido a um engenheiro que jamais paga a dívida.
Entre a penúria, os fiados no armazém, a entrada clandestina no trem, há a esperança curiosa de qualquer alívio com a presença da “loura”. É essa mulher, sensual, misteriosa, quiçá até doce, que trará de algum lugar do futuro a memória daquele filho que arrasta seu pai pela vida. E é ela também que dará a ilusão de que a desgraça se vai acabar. Mas ficará tudo ainda pior.
O conto é duro e terno. As frases permitem uma linha de ação contínua, que sai da memória e se torna presente no movimento desse narrador que recupera detalhes de si mesmo ao localizar seu pai: reduto de sua infância, prova absurda de sua própria dor. Não há filho sem pai. Há lapsos, quem sabe se do escritor, que intrigam, ou que fragilizam em certa medida, o precioso da história, como a frase “the day after”, que mais parece uma certa insistência do Mayrant Gallo do que do “autor-narrador” que viveu aquela história, um narrador longe disso e perto demais de “no entanto, fui com meu pai. Pela rua e pela vida, lentamente.”
Esses “Moinhos” emocionaram-me profundamente. Da mesma forma que me encantaram as “manchas” de “O ritual no Jardim” e o não poema-canção, o não conto do “romance” “Dias de Garoto”.
Em “O Ritual no Jardim” a meninice sai em burburinhos de histórias de quintal e de avô, no tempo da guerra, de meninas e de meninos que crescem e deixam em jardins as suas infâncias. São contos-capítulos curtos, pincelados de ludicidade, ternura e também segredos. As palavras e frases se movimentam secretamente naqueles espaços exíguos, naquelas manchas de tardes, e vão transformando em homens aqueles sonhos. O cenário de uma outra época não pareceria combinar com as narrativas curtas, contemporâneas, mas é nisso o segredo quase todo: escapolem das memórias de todas as infâncias do ontem ao hoje.
“Dias de Garoto” alcança-nos de outro tempo também, dá até uma certa raiva pensar que tudo nos diz respeito, que essas dores fazem do menino o homem que estraga a vida toda depois. Sonhos de infância.
As cidades, os cenários, são vários, são universais, São Paulo, Rio, um quintal ou um jardim, uma estação de trem de qualquer parte. E o quadrado vazio depois de uma explosão é a nossa história de intriga de gente muito grande: Guerras que ficaram sem sentido por aí.
Um livro com muito sobre esse tempo de brincadeiras e sobre os segredos das gentes crescidas. Belas histórias em narrativas densas.
Três Infâncias/Casarão do verbo/110p/R$24.
As palavras passarinhas
“Como as rochas, não gostava de máquinas, tinha horror das explosões. Encontrar atalhos preciosos no leito do rio não era motivo de alegrias passarinhas(...).” As palavras do conto “preciosidade” parece definir a premissa de Luciana Braga: seu devir poético, sua caneta deslizante desvia-se de explosões mecânicas ou programadas.
O seu primeiro livros de contos “Há cores e acordes” traz oito narrativas cujo eixo é a redescoberta. Prosa-poética que aposta na leveza e na inata força metamorfoseante da palavra, o conjunto da jovem autora, que já foi premiada com livros para crianças, traz a metáfora como a sua ferramenta principal para contar histórias.
Em sua forma particular de descortinar as suas personagens, o cotidiano se traduz em encontros subjetivos dos fatos com as palavras; são essas que parecem assumir o lugar das emoções, da surpresa, dos desencontros das personagens. Elas são algo vivo que roça suavemente o leitor, sem chocá-lo, sem explosões.
Em “Mudança”, um dos melhores contos do livro, a personagem nos leva para um lugar único, uma geografia outra, sendo a cidade um espaço de sentidos, guardador de passagens, sejam essas físicas ou vestígios de lembranças. Ali há encontros suaves com gatos e meninas, metáforas e segredos se misturando ao passado e ao presente de forma que todos os mistérios da morte sejam sutilmente entregues. A naturalidade desse fato vem da possibilidade de se ter na memória um cúmplice: a vida é caminho sem fim em sua beleza.
Maria e Osório compartilham suspeitas de amor em “Preciosidade”, com fugas dando-se, paralelamente, ao desejo de encontrarem-se na natureza antes de tudo, já que - como rio ou como terra- homem e mulher ali se traduzem. Amor, desejo, viuvez, maternidade: pactos de quem se deixa entregue ao sentimento.
Em “Fotografiló”, outro belo conto, Filomena sobrevive “fabricando pequenos milagres diários”. Sua existência pelos cantos da fria rodoviária, ou pelos sítios desertos e despudorados do abandono, emociona o leitor aproximando-o da vida crua de um não conto de fadas. E a poesia daquela prosa ajuda o desbravar desses lugares destinados aos solitários abandonados, faz-no ainda mais perto.
As tulipas amarelas do senhor Grendo ou a Rosa de algum revolucionário fazem parte do mesmo baú: são prendas escondidas na vida dos contos, descortinadas por poesia, beleza de arranjo que faz o leitor se ater a algo lá fundo; são qualquer sentimento estranho que guardávamos em repetidos cotidianos e diferentes desejos. Aquela recusa sempre ensaiada ou a entrega inusitada: a autora domina os segredos. “Butin de guerra”, “Dominique”, “À beira de amar”... seus contos são todos sopros de vida; de convite ao assentamento nesse tempo irrequieto e violento.
Luciana Lorens Braga fala de amor, de morte, de maternidade, velhice, memória, encontro, abandono, solidão. Para ela é tudo razão para a beleza do contar. A sua intimidade com as palavras é seu trunfo, embora se exceda nas imagens em alguns contos, sobrepondo-as desnecessariamente. Mas é com metáforas fortes, uma consciência de ritmo, de sonoridade, de “peso” que recombina as palavras todas, rearranjando-as de forma particular. Sua escrita é delicada e ao mesmo tempo forte. Seu tempo de histórias é qualquer um, ela não se preocupa com marcas, assume tranqüila um certo olhar: quer a sua escrita impregnada de alguma poesia à qual se relaciona.
Cachorros, gatos, meninas, ruas, rios, flores: Luciana não se limita. Ela se joga no vão lírico de sua prosa, deixa-se livre na aposta pela doçura, pela recusa à violência mesmo quando denuncia o feio que a vida guarda. As palavras são quase uma proposta de vida. Descobrir o cotidiano e reinventá-lo é fato; a escrita é o final do divã, o leito do rio, a última flor arrancada.
Há cores e acordes/Ofício das palavras. 159p.
O seu primeiro livros de contos “Há cores e acordes” traz oito narrativas cujo eixo é a redescoberta. Prosa-poética que aposta na leveza e na inata força metamorfoseante da palavra, o conjunto da jovem autora, que já foi premiada com livros para crianças, traz a metáfora como a sua ferramenta principal para contar histórias.
Em sua forma particular de descortinar as suas personagens, o cotidiano se traduz em encontros subjetivos dos fatos com as palavras; são essas que parecem assumir o lugar das emoções, da surpresa, dos desencontros das personagens. Elas são algo vivo que roça suavemente o leitor, sem chocá-lo, sem explosões.
Em “Mudança”, um dos melhores contos do livro, a personagem nos leva para um lugar único, uma geografia outra, sendo a cidade um espaço de sentidos, guardador de passagens, sejam essas físicas ou vestígios de lembranças. Ali há encontros suaves com gatos e meninas, metáforas e segredos se misturando ao passado e ao presente de forma que todos os mistérios da morte sejam sutilmente entregues. A naturalidade desse fato vem da possibilidade de se ter na memória um cúmplice: a vida é caminho sem fim em sua beleza.
Maria e Osório compartilham suspeitas de amor em “Preciosidade”, com fugas dando-se, paralelamente, ao desejo de encontrarem-se na natureza antes de tudo, já que - como rio ou como terra- homem e mulher ali se traduzem. Amor, desejo, viuvez, maternidade: pactos de quem se deixa entregue ao sentimento.
Em “Fotografiló”, outro belo conto, Filomena sobrevive “fabricando pequenos milagres diários”. Sua existência pelos cantos da fria rodoviária, ou pelos sítios desertos e despudorados do abandono, emociona o leitor aproximando-o da vida crua de um não conto de fadas. E a poesia daquela prosa ajuda o desbravar desses lugares destinados aos solitários abandonados, faz-no ainda mais perto.
As tulipas amarelas do senhor Grendo ou a Rosa de algum revolucionário fazem parte do mesmo baú: são prendas escondidas na vida dos contos, descortinadas por poesia, beleza de arranjo que faz o leitor se ater a algo lá fundo; são qualquer sentimento estranho que guardávamos em repetidos cotidianos e diferentes desejos. Aquela recusa sempre ensaiada ou a entrega inusitada: a autora domina os segredos. “Butin de guerra”, “Dominique”, “À beira de amar”... seus contos são todos sopros de vida; de convite ao assentamento nesse tempo irrequieto e violento.
Luciana Lorens Braga fala de amor, de morte, de maternidade, velhice, memória, encontro, abandono, solidão. Para ela é tudo razão para a beleza do contar. A sua intimidade com as palavras é seu trunfo, embora se exceda nas imagens em alguns contos, sobrepondo-as desnecessariamente. Mas é com metáforas fortes, uma consciência de ritmo, de sonoridade, de “peso” que recombina as palavras todas, rearranjando-as de forma particular. Sua escrita é delicada e ao mesmo tempo forte. Seu tempo de histórias é qualquer um, ela não se preocupa com marcas, assume tranqüila um certo olhar: quer a sua escrita impregnada de alguma poesia à qual se relaciona.
Cachorros, gatos, meninas, ruas, rios, flores: Luciana não se limita. Ela se joga no vão lírico de sua prosa, deixa-se livre na aposta pela doçura, pela recusa à violência mesmo quando denuncia o feio que a vida guarda. As palavras são quase uma proposta de vida. Descobrir o cotidiano e reinventá-lo é fato; a escrita é o final do divã, o leito do rio, a última flor arrancada.
Há cores e acordes/Ofício das palavras. 159p.
A polêmica das adaptações literárias para os quadrinhos
O fenômeno é visível: uma infinidade de obras literárias foram adaptadas para os quadrinhos. As livrarias estão cheias de ofertas; os clássicos - da literatura brasileira à universal- chegam em velocidade impiedosa e igual “variação sobre o mesmo tema”, já que uma mesma obra pode ser vista em mais de uma adaptação, de diferentes editoras, como o “Memórias de um sargento de Milícias”, que deu origem a “Leonardinho: memórias do primeiro malandro brasileiro” e a outras versões com o título da obra original .
Livros que para alguns custariam trabalho para ler, pela sua extensão, linguagem ou pela sua complexidade, estão disponíveis em poucas páginas ilustradas. Mas é isso algo ruim? Bom? É válido? É didático? Depende da intenção. Com o fomento do governo Federal,visando estimular crianças e jovens em idade escolar a lerem, muitos projetos de adaptações literárias foram encaminhados a editoras e comprados pelo governo.
As editoras, percebendo o filão, avançaram e tudo quanto é clássico anda sendo quadrinizado. Não sendo advogada do diabo e ainda assumindo-me leitora orgulhosa de quadrinhos tanto quanto da literatura, posso dizer tranqüilamente que as obras literárias quadrinizadas não substituem as originais. E mais ainda: algumas não conseguem nem mesmo manter “o caráter” da obra inspiradora, como é o caso de “Triste fim de Policarpo Quaresma”, da editora Desiderata, que apesar do excelente trabalho gráfico dos artistas, que produziram bem, com desenhos magníficos e diagramação boa, não consegue manter a estrutura do romance e muito menos a personalidade de Policarpo.
As elipses e transições parecem funcionar em termos de ação, mas o contexto e a linguagem, que faziam do protagonista uma das personagens mais hilariantes e ao mesmo tempo comoventemente trágicas da nossa literatura, não conseguem se manter na obra citada. É uma excelente obra de HQ, mas não uma boa adaptação do clássico de Lima Barreto. Os recortes enfatizam o aspecto caricatural de Policarpo Quaresma, mas só.
Outras obras fazem o contrário: personagens secundárias acabam mais interessantes e alguns protagonistas se mostram mais atraentes, como na obra “inspirada” no livro “Memórias de um sargento de Mílicias”, de Manuel Antonio de Almeida, “Leonardinho: memórias do primeiro malandro brasileiro”.
Esse caso é muito bom para mostrar que as dificuldades para se adaptar uma obra para HQ são imensas. Se a intenção é fazer equivalência e desejar que, por exemplo, o leitor não se sinta prejudicado se não ler o original, então é melhor que o texto seja o mais fiel possível, o que encontra barreiras em se tratando de outra linguagem.
Se a intenção é seduzir o leitor, através de outro meio, e levá-lo ao livro que inspirou o HQ, o melhor seria a criação livre, assumida e bem cuidada, que, se não se mantém fiel ao texto, pelo menos ao caráter desse sim.
Assim como as adaptações levadas ao cinema, essas que chegam aos quadrinhos sofrem dos mesmos perigos. As HQ são um gênero literário, com sua linguagem, sua estética, suas particularidades e, ao se transpôr para elas um clássico, há que se ter em mente o objetivo final. Os artistas dos quadrinhos ganham a oportunidade rara de mostrarem seus trabalhos, de serem publicados, de entrarem no mercado, mas ao fazê-lo sobre o trabalho literário pré-existente, muitas vezes acabam se perdendo, pois se o texto literário não for traduzido com qualidade, fica-se a sensação de que o artista não é bom.
Se as obras adaptadas forem trabalhadas como suporte ao livro original, nas escolas, o cuidado deve ser ainda maior. O professor tem de ser sensível para apontar as diferenças, perceber o lúdico e o especial dos quadrinhos tanto quanto da literatura, esteticamente falando. A HQ “Memórias póstumas de Brás Cubas”, da Desiderata, é uma dessas que tem sucesso raro: o texto é mantido com a maior fidelidade possível- guardando-se as devidas proporções, literalmente falando - e ainda assim os artistas criam com a linguagem dos quadrinhos, deixando claro que se trata de outro suporte. Apesar de ser um texto difícil, os autores não tentam facilitá-lo, mesmo que possa ser, em alguns trechos, chato para o leitor comum de HQ .
Se o leitor da adaptação é o leitor de HQ, ele buscará ali outras coisas, o traço, a dinâmica, a sutileza do detalhe, a ironia, o humor, a imagem que se complementa com o texto ou que nem necessita do texto. Mas o leitor de literatura que vai ao HQ buscar o caminho mais fácil para a obra deseja o mais possível saber do que se trata aquele livro tão falado e jamais lido. Assim, posso dizer que essas “traduções”, em sua grande maioria, não oferecem isso. São muitos os projetos que visam o lucro mais do que outra coisa, com algumas exceções, diga-se também.
O melhor é se entender o gênero HQ como tal, parar de se delirar achando que os jovens que não gostam de ler livros vão chegar à literatura através de uma obra adaptada aos quadrinhos. Uns poucos talvez sim, mas o melhor é ver a coisa tal qual é no nosso tempo: HQ é um gênero independente, como o cinema, possuindo bom e ruim material como há bom e ruim filme, bom e ruim romance. Se o jovem lê HQ, ele já é um leitor. Precisa ser estimulado para ser leitor de outros gêneros, chegando-se assim à literatura. Sou a favor dos livros, sempre, e como professora de literatura, luto por ela, mas as manifestações todas de nosso tempo são bem-vindas. O que precisa é se ter qualidade estética, textual, artística.
“Literatura” em quadrinhos me atrai pelos desenhos, mas eu continuo preferindo ler Machado de Assis e Lima Barreto, entre outros como Kafka, Marcel Proust, Dostoiévski, nos livros, no “meio” em que eles se fizeram grande, com o que eles deixaram em suas linguagens, suas propostas, suas metáforas, descrições, jogos, ironias, narradores: suas estéticas. Alguém por acaso iria lá querer ler Mafalda, Garfield, Homem Aranha, Cebolinha, O surfista Prateado , Sandman em páginas de um romance? Vamos ver os filmes, ler os quadrinhos e ler a literatura.
Coleção Grandes clássicos em Graphic Novel/ Memórias póstumas de Brás Cubas/por João Batista Melado & Wellington Srbek: Desiderata editora.86 pág. 48,00 .
Coleção Grandes clássicos em Graphic Novel/Triste Fim de Policarpo Quaresma/por Edgar Vasques & Flávio Braga: Desiderata editora.70 p/42,00.
“Leonardinho: memórias do primeiro malandro brasileiro”. Por Walter Pax e Vicente Castro. Editora Saraiva.72 p. 35,00.
Livros que para alguns custariam trabalho para ler, pela sua extensão, linguagem ou pela sua complexidade, estão disponíveis em poucas páginas ilustradas. Mas é isso algo ruim? Bom? É válido? É didático? Depende da intenção. Com o fomento do governo Federal,visando estimular crianças e jovens em idade escolar a lerem, muitos projetos de adaptações literárias foram encaminhados a editoras e comprados pelo governo.
As editoras, percebendo o filão, avançaram e tudo quanto é clássico anda sendo quadrinizado. Não sendo advogada do diabo e ainda assumindo-me leitora orgulhosa de quadrinhos tanto quanto da literatura, posso dizer tranqüilamente que as obras literárias quadrinizadas não substituem as originais. E mais ainda: algumas não conseguem nem mesmo manter “o caráter” da obra inspiradora, como é o caso de “Triste fim de Policarpo Quaresma”, da editora Desiderata, que apesar do excelente trabalho gráfico dos artistas, que produziram bem, com desenhos magníficos e diagramação boa, não consegue manter a estrutura do romance e muito menos a personalidade de Policarpo.
As elipses e transições parecem funcionar em termos de ação, mas o contexto e a linguagem, que faziam do protagonista uma das personagens mais hilariantes e ao mesmo tempo comoventemente trágicas da nossa literatura, não conseguem se manter na obra citada. É uma excelente obra de HQ, mas não uma boa adaptação do clássico de Lima Barreto. Os recortes enfatizam o aspecto caricatural de Policarpo Quaresma, mas só.
Outras obras fazem o contrário: personagens secundárias acabam mais interessantes e alguns protagonistas se mostram mais atraentes, como na obra “inspirada” no livro “Memórias de um sargento de Mílicias”, de Manuel Antonio de Almeida, “Leonardinho: memórias do primeiro malandro brasileiro”.
Esse caso é muito bom para mostrar que as dificuldades para se adaptar uma obra para HQ são imensas. Se a intenção é fazer equivalência e desejar que, por exemplo, o leitor não se sinta prejudicado se não ler o original, então é melhor que o texto seja o mais fiel possível, o que encontra barreiras em se tratando de outra linguagem.
Se a intenção é seduzir o leitor, através de outro meio, e levá-lo ao livro que inspirou o HQ, o melhor seria a criação livre, assumida e bem cuidada, que, se não se mantém fiel ao texto, pelo menos ao caráter desse sim.
Assim como as adaptações levadas ao cinema, essas que chegam aos quadrinhos sofrem dos mesmos perigos. As HQ são um gênero literário, com sua linguagem, sua estética, suas particularidades e, ao se transpôr para elas um clássico, há que se ter em mente o objetivo final. Os artistas dos quadrinhos ganham a oportunidade rara de mostrarem seus trabalhos, de serem publicados, de entrarem no mercado, mas ao fazê-lo sobre o trabalho literário pré-existente, muitas vezes acabam se perdendo, pois se o texto literário não for traduzido com qualidade, fica-se a sensação de que o artista não é bom.
Se as obras adaptadas forem trabalhadas como suporte ao livro original, nas escolas, o cuidado deve ser ainda maior. O professor tem de ser sensível para apontar as diferenças, perceber o lúdico e o especial dos quadrinhos tanto quanto da literatura, esteticamente falando. A HQ “Memórias póstumas de Brás Cubas”, da Desiderata, é uma dessas que tem sucesso raro: o texto é mantido com a maior fidelidade possível- guardando-se as devidas proporções, literalmente falando - e ainda assim os artistas criam com a linguagem dos quadrinhos, deixando claro que se trata de outro suporte. Apesar de ser um texto difícil, os autores não tentam facilitá-lo, mesmo que possa ser, em alguns trechos, chato para o leitor comum de HQ .
Se o leitor da adaptação é o leitor de HQ, ele buscará ali outras coisas, o traço, a dinâmica, a sutileza do detalhe, a ironia, o humor, a imagem que se complementa com o texto ou que nem necessita do texto. Mas o leitor de literatura que vai ao HQ buscar o caminho mais fácil para a obra deseja o mais possível saber do que se trata aquele livro tão falado e jamais lido. Assim, posso dizer que essas “traduções”, em sua grande maioria, não oferecem isso. São muitos os projetos que visam o lucro mais do que outra coisa, com algumas exceções, diga-se também.
O melhor é se entender o gênero HQ como tal, parar de se delirar achando que os jovens que não gostam de ler livros vão chegar à literatura através de uma obra adaptada aos quadrinhos. Uns poucos talvez sim, mas o melhor é ver a coisa tal qual é no nosso tempo: HQ é um gênero independente, como o cinema, possuindo bom e ruim material como há bom e ruim filme, bom e ruim romance. Se o jovem lê HQ, ele já é um leitor. Precisa ser estimulado para ser leitor de outros gêneros, chegando-se assim à literatura. Sou a favor dos livros, sempre, e como professora de literatura, luto por ela, mas as manifestações todas de nosso tempo são bem-vindas. O que precisa é se ter qualidade estética, textual, artística.
“Literatura” em quadrinhos me atrai pelos desenhos, mas eu continuo preferindo ler Machado de Assis e Lima Barreto, entre outros como Kafka, Marcel Proust, Dostoiévski, nos livros, no “meio” em que eles se fizeram grande, com o que eles deixaram em suas linguagens, suas propostas, suas metáforas, descrições, jogos, ironias, narradores: suas estéticas. Alguém por acaso iria lá querer ler Mafalda, Garfield, Homem Aranha, Cebolinha, O surfista Prateado , Sandman em páginas de um romance? Vamos ver os filmes, ler os quadrinhos e ler a literatura.
Coleção Grandes clássicos em Graphic Novel/ Memórias póstumas de Brás Cubas/por João Batista Melado & Wellington Srbek: Desiderata editora.86 pág. 48,00 .
Coleção Grandes clássicos em Graphic Novel/Triste Fim de Policarpo Quaresma/por Edgar Vasques & Flávio Braga: Desiderata editora.70 p/42,00.
“Leonardinho: memórias do primeiro malandro brasileiro”. Por Walter Pax e Vicente Castro. Editora Saraiva.72 p. 35,00.
Ditadura e amor: um livro para o pai
Ditadura e amor extremo pelo pai é um tema que não parece muito fácil de resolver sem que a violência embrenhe-se no texto. Mas é em meio a uma doçura cativante que uma história sobre pai – uma quase biografia, se melhor quisermos abordar o livro – desenrola-se em “A ausência que seremos”.
Desde Agamenon, o pai é quem faz a guerra; é aquele contra o caos, a autoridade contra a desobediência. E se não o próprio Deus, é o que se incumbe de negociar com deuses. O pai é a lei, e a pátria o seu território.
Um livro sobre um pai poderia supor um projeto intelectual complexo ou agarrado a um dos muitos caminhos simbólicos do tema. Mas é o contrário. É uma relato simples e poético em seu caminho direto ao cotidiano familiar, no qual se pode enxergar as armadilhas políticas e, ao mesmo tempo, testemunhar a imensa paixão de um filho por seu pai.
A literatura, a filosofia e a mitologia acolhem o pai como a força primeira. Pela carga ideológica em torno dessa figura, na densa e estreita relação com o papel autoritário dos patriarcas – leia-se ditadores– latino-americanos, qualquer versão contrária não só chama a atenção como também é bem-vinda.
Nesse sentido, “A ausência que seremos”, de Héctor Abad, é um livro ímpar, pela qualidade narrativa e, sobretudo, porque o protagonista da história é o Doutor Héctor Abad, um progenitor diferente, como nos diz o autor-narrador-filho: “Cristão na religião, marxista na economia e liberal na política”.
O médico Héctor Abad, colombiano, era de fato um convencido da necessidade de um compromisso social da medicina com a pobreza devastadora em países como a Colômbia. Durante toda a vida lutou por paz, tolerância e justiça. Extremamente sensível, trancava-se em seu estúdio para ouvir Bach e Beethoven na tentativa de curar sua dor e sua raiva.
Ele foi ameaçado várias vezes, mas não calou a boca nem se exilou, denunciando nas rádios e nos seus escritos os autores da violência que rasgou seu país até 25 de agosto de 1987, quando dois homens esvaziaram suas armas no seu corpo, na porta do Sindicato dos Professores de Medellín. Ele tinha 65 anos, usava terno e gravata, e em seu bolso foi encontrado um soneto de Borges, "Epitáfio", talvez um apócrifo, cujo primeiro verso diz: "Já somos a ausência que seremos..."
Por conta dessa vida intensa, inscrita na memória e na alma do autor do livro, foi necessário mais de duas décadas para que ele pudesse enfrentar a escrita dessa perda. "Eu arranco de dentro estas memórias como se fizesse um parto, como se um tumor fosse removido", diz Abad.
Não há dúvida de que o tempo não só o ajudou a amadurecer a escrita como também a encontrar o tom adequado em uma tradição literária onde prevalecem o pai autoritário, o tirano e o patriarca. Enquanto a figura do pai de Kafka se impõe sobre seu trabalho e sobre sua existência, o narrador colombiano, ao contrário, escreve: “Amava meu pai sobre todas as coisas... Amava meu pai com um amor animal. Gostava de seu suor, e também da lembrança de seu cheiro... Gostava de sua voz, de suas mãos, de sua roupa impecável e da meticulosa limpeza de seu corpo”.
Por isso talvez a estranheza do relato venha da surpresa: Pode esse pai amoroso existir? O pai que ri mais do que os seus filhos, que chora quando está triste, que canta tango e escreve poemas? Esse pai que nem é o que sustenta a família, numa divisão de papéis completamente atípico? o pai que não está ausente?
Como se fosse pouco, o Doutor Abad educa os seus filhos com abraços, carinhos frequentes; protege com amor a família, em meio a uma sociedade atravessada pela violência familiar, política, institucional e histórica.
"A idéia mais insuportável da minha infância era imaginar que meu pai pudesse morrer e por isso eu tinha decidido pular no rio Medellín se ele viesse a morrer."
É preciso imaginar o escritor, adulto, esperando até que um dia não deseje mais saltar para o rio Medellín para poder contar a vida desse homem amado e trazer das gavetas a cura da memória ferida. Talvez como Nietzsche, que queria escrever "para superar a realidade."
O resultado é a história de Héctor Abad e ao mesmo tempo carta, testemunho, documento e biografia: a saga da família do escritor iluminando a história de décadas na Colômbia, desde um lugar de amor e de justiça.
A vida é uma ferida absurda, diz o tango que Dr. Abad adorava cantar. Mas a vida não tem cura. Artaud disse-o melhor.
Desde Agamenon, o pai é quem faz a guerra; é aquele contra o caos, a autoridade contra a desobediência. E se não o próprio Deus, é o que se incumbe de negociar com deuses. O pai é a lei, e a pátria o seu território.
Um livro sobre um pai poderia supor um projeto intelectual complexo ou agarrado a um dos muitos caminhos simbólicos do tema. Mas é o contrário. É uma relato simples e poético em seu caminho direto ao cotidiano familiar, no qual se pode enxergar as armadilhas políticas e, ao mesmo tempo, testemunhar a imensa paixão de um filho por seu pai.
A literatura, a filosofia e a mitologia acolhem o pai como a força primeira. Pela carga ideológica em torno dessa figura, na densa e estreita relação com o papel autoritário dos patriarcas – leia-se ditadores– latino-americanos, qualquer versão contrária não só chama a atenção como também é bem-vinda.
Nesse sentido, “A ausência que seremos”, de Héctor Abad, é um livro ímpar, pela qualidade narrativa e, sobretudo, porque o protagonista da história é o Doutor Héctor Abad, um progenitor diferente, como nos diz o autor-narrador-filho: “Cristão na religião, marxista na economia e liberal na política”.
O médico Héctor Abad, colombiano, era de fato um convencido da necessidade de um compromisso social da medicina com a pobreza devastadora em países como a Colômbia. Durante toda a vida lutou por paz, tolerância e justiça. Extremamente sensível, trancava-se em seu estúdio para ouvir Bach e Beethoven na tentativa de curar sua dor e sua raiva.
Ele foi ameaçado várias vezes, mas não calou a boca nem se exilou, denunciando nas rádios e nos seus escritos os autores da violência que rasgou seu país até 25 de agosto de 1987, quando dois homens esvaziaram suas armas no seu corpo, na porta do Sindicato dos Professores de Medellín. Ele tinha 65 anos, usava terno e gravata, e em seu bolso foi encontrado um soneto de Borges, "Epitáfio", talvez um apócrifo, cujo primeiro verso diz: "Já somos a ausência que seremos..."
Por conta dessa vida intensa, inscrita na memória e na alma do autor do livro, foi necessário mais de duas décadas para que ele pudesse enfrentar a escrita dessa perda. "Eu arranco de dentro estas memórias como se fizesse um parto, como se um tumor fosse removido", diz Abad.
Não há dúvida de que o tempo não só o ajudou a amadurecer a escrita como também a encontrar o tom adequado em uma tradição literária onde prevalecem o pai autoritário, o tirano e o patriarca. Enquanto a figura do pai de Kafka se impõe sobre seu trabalho e sobre sua existência, o narrador colombiano, ao contrário, escreve: “Amava meu pai sobre todas as coisas... Amava meu pai com um amor animal. Gostava de seu suor, e também da lembrança de seu cheiro... Gostava de sua voz, de suas mãos, de sua roupa impecável e da meticulosa limpeza de seu corpo”.
Por isso talvez a estranheza do relato venha da surpresa: Pode esse pai amoroso existir? O pai que ri mais do que os seus filhos, que chora quando está triste, que canta tango e escreve poemas? Esse pai que nem é o que sustenta a família, numa divisão de papéis completamente atípico? o pai que não está ausente?
Como se fosse pouco, o Doutor Abad educa os seus filhos com abraços, carinhos frequentes; protege com amor a família, em meio a uma sociedade atravessada pela violência familiar, política, institucional e histórica.
"A idéia mais insuportável da minha infância era imaginar que meu pai pudesse morrer e por isso eu tinha decidido pular no rio Medellín se ele viesse a morrer."
É preciso imaginar o escritor, adulto, esperando até que um dia não deseje mais saltar para o rio Medellín para poder contar a vida desse homem amado e trazer das gavetas a cura da memória ferida. Talvez como Nietzsche, que queria escrever "para superar a realidade."
O resultado é a história de Héctor Abad e ao mesmo tempo carta, testemunho, documento e biografia: a saga da família do escritor iluminando a história de décadas na Colômbia, desde um lugar de amor e de justiça.
A vida é uma ferida absurda, diz o tango que Dr. Abad adorava cantar. Mas a vida não tem cura. Artaud disse-o melhor.
Atrás da sinagoga
em: 2+ em 12-11-2011
O escritor norte-americano Philip Roth recebeu críticas ruins com seu romance anterior, mas “Nêmesis” eliminou qualquer dúvida possível sobre o seu declínio como autor. Roth se move na tradição norte-americana de grandes escritores usando um estilo jornalístico com recortes de poesia.
“Nêmesis” se passa na comunidade judaica de Newark, New Jersey. Durante o verão de 1944, eclode uma epidemia de poliomielite. Não é a primeira vez, mas o número de mortos cresce dramaticamente. Cantor Bucky, um jovem professor judeu que dirige uma escola de verão, enfrenta a morte de seus alunos com uma mistura de espanto e raiva. A vida de Cantor, um herói corroído por dúvidas éticas e morais, não tem sido fácil. Sua mãe morreu no parto, seu pai passou um tempo na cadeia, sua miopia o impediu de se alistar no exército para lutar. Ainda assim, os avós maternos tiveram o cuidado de dar todo o carinho que uma criança pode aspirar. Seu avô lhe ensinou disciplina, princípios morais fortes, auto-controle. Aos 23 anos, Cantor é um professor responsável e comprometido com o bem-estar dos seus alunos, quase um irmão a quem todos tem amor e respeito.
“Nêmesis” é dividido em três atos, um recurso comum em Philip Roth, que joga com o ideal clássico da catarse. O romance começa como uma história idílica ofuscada pelos primeiros casos de poliomielite. Mas a dor que invade o coração das famílias afetadas desfaz qualquer ilusão de solidariedade. Essa dor não sai com demonstrações de carinho ou com palavras de conforto na sinagoga.
“Poliomielite” é desconfiança, raiva, ressentimento. Poliomielite não se limita ao corpo doente. Seus estragos também são refletidos na podridão moral de uma sociedade que perde a confiança em Deus, na justiça ou misericórdia. Philip Roth faz da poliomielite uma metáfora, inspirado na peste de Camus, que alerta para os perigos do fascismo, um vírus que pode adormecer até ter a oportunidade de retornar. Roth vai ainda mais longe: o problema não é o fascismo. O problema é a condição humana. Nossas reivindicações morais são fantasias retóricas; algo pode se desmoronar quando se vê o medo. O pânico nos traz de volta à “pré-moral” do Estado.
Cantor terá de enfrentar um dilema moral que irá testar a sua integridade quando oferecem a ele um trabalho longe do foco da epidemia, pois terá de abandonar seus alunos. Ele será obrigado a escolher e determinar se vai viver de acordo com suas exigências morais ou sucumbir ao apelo de seu destino.
Philip Roth não fugiu do desafio de enfrentar mais uma vez a bondade presumida de Deus. Se Deus é bom e onipotente, por que ele permite a morte de inocentes? Cantor acredita que Deus age como uma velha estúpida e cruel.
“Nêmesis” é um romance extraordinário, onde se vê o talento de Roth como um contador de histórias e seu compromisso com os grandes temas da literatura: o ser humano, a morte, Deus, o mal, o irracional, a tensão entre o indivíduo e a comunidade, a crueldade da sociedade americana onde o “mal” parece ser uma presença permanente. Seria absurdo procurar esperança nestas páginas. Philip Roth não tinha a intenção de desenhar uma fábula moral. Simplesmente, ele mostra a tremenda vulnerabilidade dos seres humanos. No final, todos fracassam na mesma infelicidade.
Trad. Jorio Dauster/Cia das Letra
O escritor norte-americano Philip Roth recebeu críticas ruins com seu romance anterior, mas “Nêmesis” eliminou qualquer dúvida possível sobre o seu declínio como autor. Roth se move na tradição norte-americana de grandes escritores usando um estilo jornalístico com recortes de poesia.
“Nêmesis” se passa na comunidade judaica de Newark, New Jersey. Durante o verão de 1944, eclode uma epidemia de poliomielite. Não é a primeira vez, mas o número de mortos cresce dramaticamente. Cantor Bucky, um jovem professor judeu que dirige uma escola de verão, enfrenta a morte de seus alunos com uma mistura de espanto e raiva. A vida de Cantor, um herói corroído por dúvidas éticas e morais, não tem sido fácil. Sua mãe morreu no parto, seu pai passou um tempo na cadeia, sua miopia o impediu de se alistar no exército para lutar. Ainda assim, os avós maternos tiveram o cuidado de dar todo o carinho que uma criança pode aspirar. Seu avô lhe ensinou disciplina, princípios morais fortes, auto-controle. Aos 23 anos, Cantor é um professor responsável e comprometido com o bem-estar dos seus alunos, quase um irmão a quem todos tem amor e respeito.
“Nêmesis” é dividido em três atos, um recurso comum em Philip Roth, que joga com o ideal clássico da catarse. O romance começa como uma história idílica ofuscada pelos primeiros casos de poliomielite. Mas a dor que invade o coração das famílias afetadas desfaz qualquer ilusão de solidariedade. Essa dor não sai com demonstrações de carinho ou com palavras de conforto na sinagoga.
“Poliomielite” é desconfiança, raiva, ressentimento. Poliomielite não se limita ao corpo doente. Seus estragos também são refletidos na podridão moral de uma sociedade que perde a confiança em Deus, na justiça ou misericórdia. Philip Roth faz da poliomielite uma metáfora, inspirado na peste de Camus, que alerta para os perigos do fascismo, um vírus que pode adormecer até ter a oportunidade de retornar. Roth vai ainda mais longe: o problema não é o fascismo. O problema é a condição humana. Nossas reivindicações morais são fantasias retóricas; algo pode se desmoronar quando se vê o medo. O pânico nos traz de volta à “pré-moral” do Estado.
Cantor terá de enfrentar um dilema moral que irá testar a sua integridade quando oferecem a ele um trabalho longe do foco da epidemia, pois terá de abandonar seus alunos. Ele será obrigado a escolher e determinar se vai viver de acordo com suas exigências morais ou sucumbir ao apelo de seu destino.
Philip Roth não fugiu do desafio de enfrentar mais uma vez a bondade presumida de Deus. Se Deus é bom e onipotente, por que ele permite a morte de inocentes? Cantor acredita que Deus age como uma velha estúpida e cruel.
“Nêmesis” é um romance extraordinário, onde se vê o talento de Roth como um contador de histórias e seu compromisso com os grandes temas da literatura: o ser humano, a morte, Deus, o mal, o irracional, a tensão entre o indivíduo e a comunidade, a crueldade da sociedade americana onde o “mal” parece ser uma presença permanente. Seria absurdo procurar esperança nestas páginas. Philip Roth não tinha a intenção de desenhar uma fábula moral. Simplesmente, ele mostra a tremenda vulnerabilidade dos seres humanos. No final, todos fracassam na mesma infelicidade.
Trad. Jorio Dauster/Cia das Letra
sábado, 24 de setembro de 2011
outras linguagens
http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM1628585-7823-SAIBA+COMO+O+CINEMA+O+TEATRO+E+A+MUSICA+SE+RELACIONAM+COM+A+LITERATURA,00.html
+
http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM1628579-7823-MILENA+BRITO+FALA+DA+LIGACAO+ENTRE+OS+PAISES+DE+LINGUA+PORTUGUESA++ATRAVES+DA+LITERATURA,00.html
Trecho de entrevista no Aprovado sobre leitura
sábado, 30 de julho de 2011
Sem páginas, esse século 21 com livros
A experiência contemporânea da leitura e da escrita é única. Entretanto, a realização literária de um projeto é ainda mais particular no vão cibernético: barras de rolagem, posts, comments, sobreposições, espaços visuais: o livro-blogue desafia todos os lados da tal questão na era líquida da internet.
O que a escritora baiana Laura Castro realizou, depois de ganhar o prêmio de criação literária da Funarte, é, no mínimo, inquietante: um livro-objeto, um blogue-livro, um livro-experiência, formas e palavras sem páginas. Pelo menos sem páginas tais como as sabíamos.
“Cabidela” (“Breu” e “cabidela: bloco de máscaras”) correspondem a uma espécie de kit de leitura e escrita. A autora, junto com a artista Cacá Fonseca, elaborou um caminho até o leitor com elementos literários (narrativas curtas, poemas, cartas, romance epistolar — ou um “romance-post” ) com desenhos e acessórios que revelam a interativa relação (ou a ausência desta) do sujeito contemporâneo com o livro.
Mas elas fabricaram um material que eleva o livro, o blogue e o bloquinho de notas — que mesmo diferente me lembra o caderno fac-similado de Ana Cristina César —à categoria de objeto de arte. A interatividade talvez não surpreenda pelas possibilidades do leitor de escrever suas idéias ali, mas não há dúvida de que elas pesquisaram muito como fazer diferente, deixando ao leitor da era da blogosfera o caminho para explorar nesse livro diferente as suas habilidades, desafios e desejos.
O desenho gráfico é complexo esteticamente e simples na abordagem. As máscaras, as cartas, a disposição das letras nas páginas, as lâminas, folhas em branco, a inversão do texto, os desenhos à mão sobrepostos ao trabalho computadorizado, toda essa ludicidade é explorada como parte da natureza do próprio livro, que serve ao homem e à sua sensorialidade. E, claro, tudo se relaciona “ao livro” desse leitor tão específico: o da rede. É um blogue aquilo lá, nem me perguntem como.
Essas “partes” que configuram o “kit” encontram o texto de Laura Castro e suspendem o leitor que esteve distraído com os jogos ali: os textos são densos, intrigantes e bem cuidados. São de linguagem e estilo do tempo delas, Laura Castro e Cacá Fonseca, com a virtualidade da vida atravessando-os: no que eu chamo de romance-post quem sabe se a personagem existe, mas ela desloca-se numa estrutura narrativa próxima demais do nosso dia, incomodando o leitor e levando-o a um outro labirinto: “É uma página inteira e só. É um emaranhado de fios. Romance não é mais novelo.”
A fragmentação de algumas partes não são inconclusas em “Breu”; o leitor bem sabe que a história “linka-se” em algum lado mesmo quando perdida. É cuidadosamente narrado e o leitor pode optar, lembrando o nosso velho e bom Córtazar, por não começar linearmente. Lembrança também de Miguel de Unamuno com seus personagens questionando o personagem-autor.
Os textos, fragmentos ou poemas que embrenham-se pelo romance, enriquecem a híbrida forma ali. A personagem intima o leitor, prende-o naquele labirinto. O tempo é quebrado, alterado assim como a forma, na virtualidade da vida ou da história. O negócio vira cena, de um filme, de um vídeo, de uma paisagem dramática de homens-personagens. A narradora-personagem, uma escritora, de repente também diz: “Já havia tempo que eu não a narrava nada”.
Sem nem saber como, saltamos o cotidiano, os espaços de uma casa, nos encontramos na cozinha. Falamos de sonhos, de solidão, de amor, mesmo sem existirmos (personagens nos pensamos quase o tempo todo, num dos truques) e o espaço ora é definido ora desfeito sem dar tempo de pensar: “Fiquei um tempo vivendo sem bloquinho (...) Desde que o conheci, aqui, na praça dos 15 mistérios, vivi um tempo sem narração, sem apontamentos”.
Laura assume muitos dos problemas contemporâneos, joga-nos na cara a dificuldade de separar o joio do trigo na era digital, diz que seu “livro” é um blogue, que escrito está e ficará na rede, mas é o bloquinho de notas dela que vira tudo. É assim que ela corteja-nos, deixando claro que o tempo se apropria de tudo e quer sempre mais. Nada de máquinas de escrever, mas canetas e teclados de computador podem.
O bloquinho que vem com o livro é valioso. Os escritos são para ficar e seu/nosso “Borratório”, também o bloco de anotações da escritora de “Breu”, avisa-nos: “Daqui o bloco é líquido/o blogue escorre e evapora feito rio./O blogue impõe outra ordem,/A nova ordem.”
A autora parece não ter conflitos em pertencer ao tempo em que retrôs combinam com paisagens futuristas e desenhos computadorizados.
O livro “Cabidela” é um bom produto dessa época duvidosa de excessos. É um exemplo do que Roger Chartier e Umberto eco discutiram na conversa sobre o fim ou não do livro. Fim? Laura mostra como começo sem final esse vício de recriar o livro.
Cabidela/Laura Castro/Edição independente/R$30,00.
Amar sem Flores
O livro “Amar é crime”, do escritor pernambucano Marcelino Freire, chega provocando literariamente os que se detém sobre o amor (amor ou desamor, Marcelino?) para buscar seus sons, suas cores, suas caras, suas peles, suas suspeitas. E os sujeitos saídos do lado de lá também: gordas, velhos, prostitutas, criminosos, despeitados, desprezados, enjeitados.
Chamados pelo próprio de “Contos de amor e morte ou pequenos romances”, as partes de seu livro trazem narrativas condensadas, histórias submergidas em limo e coladas à linguagem, que despedaça-se, decompõe-se lentamente, afunila-se, como no conto “Liquidação”, com personagens disputando sofás e lugares de existir.
O autor, por todo o livro, oferece ao leitor uma musiquinha insistente de um verso só, um verso “fraco” qualquer do qual não nos podemos livrar. Mas aí está a força do seu livro: “Por causa delas – das rimas e dos fiéis e do vigarista deste pastor – é que o nosso país está o que está. Um horror!” A ironia e a exploração da linguagem vai sedimentando a desconfiança de todos, o narrador inclusive se coloca sob suspeita. No conto-romance “União civil”, questiona-se se o autor conseguiu mesmo escrever o “conto” sobre os dois homens com o carrinho de bebê. E o conto, pode-se dizer, é sobre a absurda resistência aos “dois homens com carrinho de bebê”.
As histórias vão trazendo surpresas e provocando o leitor com as descidas e subidas de ritmos - a oralidade é cada vez mais trabalhada pelo escritor como potência literária, estilo, matéria-, e com as rimas que brincam com o “kitsch” fazendo ecoar nos nossos ouvidos a tal musiquinha desgraçada.
O que acontece nas narrativas curtas são segredos estranhos: prostitutas que se constroem no desejo (de amarem ou serem amadas), juntamente com a “montagem” de seus corpos, como se vê em “Modelo de vida”, cujo encontro entre um gringo velho e uma garota de programa resulta numa caçada à roupa certa, a roupa que não engorde, que valerá o tempo de se ter uma pausa na dura resistência a um dia mais de vida “quase” bonita, “quase” feliz.
No conto “Vestido longo”, a órfã muito pobre - quase nua - acaba vestida com minissaias que a deixam ainda mais explícita na descaração da vida injusta que lhe roubou a mãe. Com rimas e pausas estranhas e criativas, acompanhamos a tragédia da mocinha que se presta à metáfora de tantas deste Brasil: “E assim fui ganhando casa, mortadela. Dormia em boleia, rede de pesca. No acostamento. Fui parar, pois, na casa de Dona Kalil. Mas sei rebolar. Rebolar, rebolar, rebolar.”
Com namorados vingativos, obesas desesperadas, velhos esquecidos, mocinhas rodadas, criminosos, o livro “Amar é crime” confirma a densidade da obra de Marcelino e, assim como “Contos negreiros”, ironia, linguagem, personagens, ritmo vão puxar o leitor para cúmplice de uma história grande, um romance viciado. Amar e morrer são a mesma coisa, só não rima. As rimas, aliás, deixam-nos boquiabertos no livro. Por isso, tanta feiúra ali é o oposto ao descuido; há trabalho grande nas narrativas, dedicado olhar, pena apurada. Marcelino condensa muito bem as histórias, deixa lugar para o leitor entrar, revolve as palavras de forma rara, ainda que comum em sua aparência.
Com cada conto-romance, um Brasil, uma alma. E cada tempo de amar ali é o segundo sutil que devemos achar. Personagens ao estilo do autor entregam “bilhetes” ao leitor perdido em cidades muradas. As bombas explodem sem parar e as rimas se tornam versos repetidos na nossa mente. Um mundo outro sem beleza, sem certeza, sem lugar certo para cair, sem alguém para nos desencalhar ou nos mover como se poderia mover uma obesa de duzentos e quarenta quilos. Amar sem flores sim.
Amar é crime/ Edith/169p/R$25
Nosso grão mais fino
Sob finas palavras: incesto e solidão em paragens nordestinas
Milena Britto
Não há como se evitar, muitas
vezes, a necessidade de reconhecer
ecos de autores conhecidos
nas páginas de novos romances.
Para muitos – dos novos
escritores – uma falta grave
do crítico que sai impondo influências,
diálogos e toda a sorte
de encontros. O mais exato,
porém, é que há mesmo um
extasiar-se do crítico diante do
fato de sentir-se íntimo, cúmplice,
poderoso por tal reconhecimento,
conquanto este tenha
ainda aagudezdosurpreendente,
do inesperado, do único.
Ao ler Nosso Grão Mais Fino,
primeiro romance do pernambucano
José Luiz Passos, não
pude sequer disfarçar que, de
alguma forma, estava, juntamentecomonarrador,
voltando
à casa da infância. E não apenas
pelas sagas e tragédias de famílias
que para nós deixaram
José Lins do Rêgo, Graciliano
Ramos, GuimarãesRosa–faróis
da prosa regionalista brasileira
– ou pela densa e retorcida ficção
de Raduan Nassar e Osman
Lins. Não foi só, mas também
esse eco literário ali encontrado
que me fez mais surpreendida
com a força da narrativa.
Além da riqueza com a qual
explora a intimidade das famílias
feudais nordestinas–donas
de fazendas e de vis segredos –,
há a vastidão de sentimentos
que povoa corpos e mentes dos
que se acorrentam (ou se libertam)
nas vielas do incesto.
A construção da história de
Ana e Vicente, unidos e desunidos
por um amor mais extenso
do que a infância, dá-se
extraordinariamente em uma
confluência de vozes narrativas,
comalternância de Vicente, Ana
e Zelino – irmão de Vicente, que
talvez nem tenha existido além
da imaginação do irmão, mas
que nos faz testemunhar a disputa
pelo amor da mesma moça,
que termina arrebatada pelo
próprio tio, numa truncada trama
de incesto, desejo, solidão e
angústia.
Linguagem e estilo se colocam
em diálogo fértil, com metáforas
preciosas, vocabulário
rico, deixando que o erudito e o
criativo se encontrem bem. Um
escritor culto e engenhoso, que
tanto se abandona na prosa
poética quanto bem controla as
camadas de histórias; que deixa
Fedra,umacadelaquemorreao
receber um tiro, ser uma homenagem
ao mundo mitológico
tanto quanto à Baleia de Vidas
Secas. Que divide bem o
amor, o ódio e o medo dos “filhos
dos pais”.
Com Anquises e Diana, as caçadas
pela memória do pai ou
pela perdiz mais bela deixam o
leitor solto no ar, sem a segurança
de moral ou de regras. O
destino junta mesmo Ana e Vicente,
contudo os leva para outros
mundos, para além das terras
nordestinas. Mas eles voltam.
Seja nessa memória encravada
por lá, seja nesse delírio
que nos metemos com eles.
Muito bom ter o encontro do
contemporâneo e da tradição
que nos guarda.
Éprosafina, essa.Esobopeso
deumtempoquenemopesado
relógio de um sacerdote pode
calar. Estranha saga misturada
com ficção científica, ou quiçá
com um realismo fantástico renovado,
na qual um misterioso
suicídio durante uma viagem
num zepelim conduz o leitor a
um Nordeste tão universal, de
engenhos de açúcar, de caçadas,
de amor e de segredos.Um
vício particular nosso – da boa
prosa – na escrita de um nordestino
que fez do seu êxodo a
volta eterna para casa.
NOSSO GRÃO MAIS FINO / JOSÉ LUIZ
PASSOS
Alfaguara / 157 p. / R$ 38 /
objetiva.com.br/alfagu
segunda-feira, 6 de junho de 2011
De verbários, milagrários e desejos: a língua dos pássaros
Publicado no A tarde em 04/06/2011
O angolano José Eduardo Agualusa encarou o maior segredo de todos nós; os sonhos, os desejos, os perigos, os mistérios, as surpresas, as delícias, o terror, as guerras, as histórias, a memória, a beleza: a língua.
O seu novo romance “Milagrário Pessoal” assume a missão de decifrar os mistérios da língua portuguesa a partir de uma jovem lingüista, que investiga uma lista de novos neologismos publicados em artigos de jornal, e um professor, velho anarquista angolano “ligado ao absurdo”, com uma vida emaranhada em livros, guerras, poetas, segredos e lendas.
O romance passeia por mitos, pela história, por documentos antigos. Uma língua de pássaros aparece como chave para o mergulho na aventura que se espalha por Angola, Brasil e Portugal. O narrador é um erudito e bem humorado professor, personagem que parece representar politicamente uma espécie de guardião de segredos fundadores. Esse narrador, do passado, dos segredos de livros e bibliotecas, tem uma ligação especial com o presente através de Iara - nome nada casual da jovem que pesquisa palavras ainda não dicionarizadas.
Além de levar o nome da mulher-sereia, híbrida como um neologismo, Iara revela-se como a outra ponta de uma história quase impossível de tão enredada. Computadores, programas, I-pods, toda a sorte de tecnologia e aparatos modernos entram na história para erigir uma homenagem a esse bem maior que é a palavra. E parte desse propósito é construído pelos caminhos da própria origem do romance, que é a origem da palavra, que é quase a origem do homem: a magia e o encanto de uma palavra que transforma e dá sentido ao existir. O que tem de maravilhoso, contudo, é que essa alegoria é pensada através da língua portuguesa.
Documentos antigos contêm lendas e histórias, marcas de tempo e de transformação; essas contém e estão contidas em outros livros, que abarcam outras páginas e outras lendas, e assim, como uma caixa sem fim, essa língua que contém outras vai compondo uma rede de sentido e de segredos que une três continentes. Da oralidade à escrita, entre as guerras e os mitos, falando dos seres humanos e dos míticos, as páginas de “Milagrário” vão construindo a língua de Camões, de Caetano, de Luandino Vieira, de Cruz e Souza, de Ana Paula Tavares, de Manoel de Barros, de Guimarães Rosa e de muitos poetas que emprestam seus versos para uma língua seguir roçando em outras e nos revelando como parte de um segredo grande.
Poetas e escritores de Angola, do Brasil e de Portugal compõem o texto de Agualusa, numa bela e incrivelmente bem-feita coleção de palavras. O escritor se revela um mestre ao inventar neologismos para pensar sua língua, fazendo também parte da mágica aventura de nomear coisas e sentimentos. As citações de eventos históricos que seguram o segredo estão desde a Índia até o Brasil. Lendas se misturam à história; de amor e de magia, mas também histórias de poder e de guerra. De “segredanças”.
A linguagem é cheia de surpresas não só por neologismos; o narrador usa vocábulos que talvez não existam ou que existiram algum dia, mas também revela sob outra luz ou reinventa palavras. Essas oferecem-se ao sacrifício para dar vida aos nossos sonhos e a uma memória esquecida de quando tudo começou. Lendas africanas se juntam a lendas pernambucanas; línguas tantas são essas que somos muitos mitos.
O contar simples e rico de José Eduardo encanta, deixa a ternura e as suspeitas irem longe; seduz como uma flor de raro perfume, talvez a flor do Lácio. Os mistérios são das línguas e dos povos, as histórias da colonização e das independências descortinam o poder desde o alto de uma palavra. A vida não parou, o mistério está ali para deixar-nos diante da esfinge, a nossa língua; esse enigma misterioso é nosso segredo, é nosso amor. Segredo que escapuliu da língua dos pássaros.
quinta-feira, 2 de junho de 2011
O Brasil com Lima Barreto: Brunzundangas, Tangolomango e resistência
Publicado no A tarde, 28/05/2011
Policarpo Quaresma, Clara dos Anjos, Isaías Caminha... as personagens de Lima Barreto vão surgindo como parentes que chegam a visitar. É daí, quiçá, o sentimento de encontro feliz que se tem ao ler o livro “Lima Barreto”, de Cuti, pseudônimo de Luiz Silva, poeta, escritor, um dos fundadores dos “Cadernos Negros” e do “Quilombhoje Literatura”.
Esse encontro feliz é porque Cuti, ao invés de simplesmente comentar as obras de Lima Barreto, deixa a um outro Lima a porta aberta para entrar em casa. Se o Brasil racista de outrora ignorou essa literatura rica e única, o Brasil (ainda) racista de agora a tem tratado ainda com meias-verdades. A sua obra, claramente fundamental no entendimento de um período e de um pensamento geral sobre o que seria uma nação e os conflitos ali existentes, é precursora de valores do nosso Modernismo. É isso, mas muito mais.
O livro de Cuti, modesto, pequenino, sem artifícios intelectuais, traz, justamente, as obras desse escritor a partir de seu lugar de autor negro, que sofria e que também pensava o racismo. Os fatos da vida de Lima Barreto acompanham, entremeados com observações sensíveis e críticas de Cuti, o surgimento de sua obra literária.
A constatação de Cuti é a de que Lima Barreto esteve sempre pensando e sempre atento às artimanhas e movimentos do racismo – e recuperemos da história que o racismo ali era ainda aquele configurado em projeto: de silêncio absoluto, de combate histórico, físico, social, ideológico.
O escritor que nos deixou o inesquecível e fascinante anti-herói Policarpo Quaresma, quixotesco personagem que nos maravilhou com seus projetos para a nação, concebeu uma estética própria, relutou em ser cooptado por modismos ou desaparecer ante frentes de combates desassossegados; ele foi ardiloso, sutil, irônico, mas direto: escrevia e comentava, desarmava o circo racista; evidenciava as fragilidades dos discursos, as posturas centradas na hipocrisia do pensamento ; deixava em falas de suas personagens as precisas palavras para dar àquele Brasil uma resposta, ou uma corajosa recusa a aceitar calado suas graves e hipócritas construções.
Pária? Fraco? Débil? Louco? Não. Lima Barreto era sensível, sim, mas era também forte, consciente, consistente e sabedor de seu talento com a palavra. Ele desejava ser escritor de sucesso; sabia que o pensamento e as letras eram o seu caminho e, mesmo com todas as dificuldades- não poucas sendo ele neto de escravos, pobre e preto- não cansou de buscar esse lugar. As obras foram surgindo de suas experiências, suas observações enquanto negro naquela sociedade; pensou sobre a arte, sobre a vida, sobre a sociedade de seu tempo com igual rigor. Suas crônicas, contos e romances são discutidos por Cuti com uma junção de caminhos, vamos acompanhando o contexto e entendendo a obra a partir desse lugar de sujeito, de cidadão, de filho da pátria.
Desde que “convivi” com Lima Barreto, há mais de uma década, em uma sala do Instituto de Letras, com a professora Florentina Souza, que ele tem ficado por ali. E foi daquelas aulas que saíram as desconfianças; entender esse Brasil, essa literatura não é fácil. Anos depois, reencontro Lima Barreto nesse livro de Cuti. A Literatura Brasileira tem Lima Barreto, a literatura brasileira tem negros.
O livro de Cuti traz uma leitura diferente de Lima Barreto. E a sua feitura, além de seu conteúdo, traz um certo Brasil às páginas: o Brasil de hoje, que se repensa, que quer se pluralizar. E ele próprio revela e assume a sua estratégia de escrita: “escrevi esse livro para o leitor negro”.
Que esse leitor negro seja entendido como parte da outra história: Lima Barreto conseguiu, enfim, ser o escritor que desejava, hoje, negros são leitores e temos outra história. E, assim como aquele moço do Sarau Bem Black, eu também queria abraçar o Lima Barreto. E o Cuti.
Lima Barreto/ Selo Negro/col. Retratos do Brasil Negro/127p/20,00
Policarpo Quaresma, Clara dos Anjos, Isaías Caminha... as personagens de Lima Barreto vão surgindo como parentes que chegam a visitar. É daí, quiçá, o sentimento de encontro feliz que se tem ao ler o livro “Lima Barreto”, de Cuti, pseudônimo de Luiz Silva, poeta, escritor, um dos fundadores dos “Cadernos Negros” e do “Quilombhoje Literatura”.
Esse encontro feliz é porque Cuti, ao invés de simplesmente comentar as obras de Lima Barreto, deixa a um outro Lima a porta aberta para entrar em casa. Se o Brasil racista de outrora ignorou essa literatura rica e única, o Brasil (ainda) racista de agora a tem tratado ainda com meias-verdades. A sua obra, claramente fundamental no entendimento de um período e de um pensamento geral sobre o que seria uma nação e os conflitos ali existentes, é precursora de valores do nosso Modernismo. É isso, mas muito mais.
O livro de Cuti, modesto, pequenino, sem artifícios intelectuais, traz, justamente, as obras desse escritor a partir de seu lugar de autor negro, que sofria e que também pensava o racismo. Os fatos da vida de Lima Barreto acompanham, entremeados com observações sensíveis e críticas de Cuti, o surgimento de sua obra literária.
A constatação de Cuti é a de que Lima Barreto esteve sempre pensando e sempre atento às artimanhas e movimentos do racismo – e recuperemos da história que o racismo ali era ainda aquele configurado em projeto: de silêncio absoluto, de combate histórico, físico, social, ideológico.
O escritor que nos deixou o inesquecível e fascinante anti-herói Policarpo Quaresma, quixotesco personagem que nos maravilhou com seus projetos para a nação, concebeu uma estética própria, relutou em ser cooptado por modismos ou desaparecer ante frentes de combates desassossegados; ele foi ardiloso, sutil, irônico, mas direto: escrevia e comentava, desarmava o circo racista; evidenciava as fragilidades dos discursos, as posturas centradas na hipocrisia do pensamento ; deixava em falas de suas personagens as precisas palavras para dar àquele Brasil uma resposta, ou uma corajosa recusa a aceitar calado suas graves e hipócritas construções.
Pária? Fraco? Débil? Louco? Não. Lima Barreto era sensível, sim, mas era também forte, consciente, consistente e sabedor de seu talento com a palavra. Ele desejava ser escritor de sucesso; sabia que o pensamento e as letras eram o seu caminho e, mesmo com todas as dificuldades- não poucas sendo ele neto de escravos, pobre e preto- não cansou de buscar esse lugar. As obras foram surgindo de suas experiências, suas observações enquanto negro naquela sociedade; pensou sobre a arte, sobre a vida, sobre a sociedade de seu tempo com igual rigor. Suas crônicas, contos e romances são discutidos por Cuti com uma junção de caminhos, vamos acompanhando o contexto e entendendo a obra a partir desse lugar de sujeito, de cidadão, de filho da pátria.
Desde que “convivi” com Lima Barreto, há mais de uma década, em uma sala do Instituto de Letras, com a professora Florentina Souza, que ele tem ficado por ali. E foi daquelas aulas que saíram as desconfianças; entender esse Brasil, essa literatura não é fácil. Anos depois, reencontro Lima Barreto nesse livro de Cuti. A Literatura Brasileira tem Lima Barreto, a literatura brasileira tem negros.
O livro de Cuti traz uma leitura diferente de Lima Barreto. E a sua feitura, além de seu conteúdo, traz um certo Brasil às páginas: o Brasil de hoje, que se repensa, que quer se pluralizar. E ele próprio revela e assume a sua estratégia de escrita: “escrevi esse livro para o leitor negro”.
Que esse leitor negro seja entendido como parte da outra história: Lima Barreto conseguiu, enfim, ser o escritor que desejava, hoje, negros são leitores e temos outra história. E, assim como aquele moço do Sarau Bem Black, eu também queria abraçar o Lima Barreto. E o Cuti.
Lima Barreto/ Selo Negro/col. Retratos do Brasil Negro/127p/20,00
A diversidade sexual no Brasil contemporâneo
Publicado no A tarde 21/05/2011
O livro “Retratos do Brasil Homossexual: fronteiras, subjetividades e desejos” apresenta um retrato do Brasil com relação à homossexualidade. Os 98 artigos que compõem o livro noticiam da lei às artes e trazem o gay, a lésbica, o trans e o travesti como sujeitos de uma outra história do Brasil.
A comparação que o organizador Horácio Costa faz com outro livro famoso, “Retratos do Brasil”, de Paulo Prado, é pertinente. Aquele livro trouxe a cena da história brasileira moderna à discussão e ainda hoje, oito década depois, o clássico serve para interpretar e entender o Brasil; esse outro “Retratos” desloca o assunto para um lugar de observação contemporâneo. E é daqui que se prepara o ângulo para que esse “retrato” desnude aquilo velado ou invisibilizado por tantos mecanismos.
Depois de passar esses últimos tempos discutindo a união civil entre os homossexuais, talvez o brasileiro ache-se avançadinho. Mas é melhor se debruçar sobre “as imagens” dessa cena para entender o quanto se tem ainda por fazer. Ao mesmo tempo, percebe-se que o Brasil caminhou bastante em direção a esse lugar que se quer desde a sua construção de nação: um país diverso.
Os textos detêm-se sobre os temas que já conhecemos – homofobia, desejo reprimido, discriminação, comportamentos gays - e outros ainda pouco discutidos – as cirurgias para mudança de sexo, a situação dos trans e dos intersexos, as leis que regulam práticas sobre o corpo.
Os trans, ainda pouco inseridos nas discussões, são tratados em alguns dos artigos, como o de Berenice Bento, autora do livro “A reinvenção do corpo”. No artigo presente no livro, ela aborda a identidade legal de gênero, destacando a problemática entre os travestis e os transexuais. Os conflitos entre situação “cromossomática” do corpo, genitália, identidade de gênero, performance e ajuste ao nome legal são imensos e as conseqüências são das mais subjetivas às trágicas física e socialmente.
Artigos sobre cultura e representações revelam que a homofobia costuma ser “plantada” até mesmo quando se pensa que há uma abertura e uma boa intenção por parte dos que apresentam gays em seus produtos. Leandro Colling discute isso em “A representação da homossexualidade na telenovela Duas caras”, onde analisa as personagens gays desmontando os estereótipos e demonstrando criticamente as artimanhas da heteronormatização. Do que adiante ter um gay na novela se esse gay não tem desejo, não beija, não casa? Acaso existe amor sem corpo?
No artigo “Corpo e fotografia em Erwin Olaf” Wilton Garcia analisa aspectos subjetivos da homocultura a partir da série fotográfica “Fashiom victms”, destacando a relação do corpo exposto e explorado como mercadoria e os desejos projetados por construções simbólicas prévias.
A literatura e o teatro são abordados em vários artigos que analisam as personagens e as construções estéticas que compõem as representações. Há desde textos sobre uma intencionalidade queer na obra até aqueles considerados principalmente por sua autoria, como dos de Trevisan ou Caio Fernando Abreu. Mas a maioria dessa literatura, como mostram vários textos ali, traz o homossexual como um suspeito: as personagens ambíguas, sem clareza de sexo, com algo oculto.
“Retratos do Brasil Homossexual” faz-nos pensar nos desafios identitários contemporâneos. No livro, o direito e a medicina fazem coro com a literatura, o teatro, o cinema para deixar exposto o tanto que esse Brasil moderninho precisa ainda caminhar. É necessário, verdadeiramente, abrir as cabeças, e as pesquisas ali, sérias e pertinentes, devem ajudar na compreensão intelectual e política desse tema caro. Que essa diversidade saia daquelas páginas e se espalhe por nossas vidas. Com fotos e flashes para dar novos “retratos”.
O livro “Retratos do Brasil Homossexual: fronteiras, subjetividades e desejos” apresenta um retrato do Brasil com relação à homossexualidade. Os 98 artigos que compõem o livro noticiam da lei às artes e trazem o gay, a lésbica, o trans e o travesti como sujeitos de uma outra história do Brasil.
A comparação que o organizador Horácio Costa faz com outro livro famoso, “Retratos do Brasil”, de Paulo Prado, é pertinente. Aquele livro trouxe a cena da história brasileira moderna à discussão e ainda hoje, oito década depois, o clássico serve para interpretar e entender o Brasil; esse outro “Retratos” desloca o assunto para um lugar de observação contemporâneo. E é daqui que se prepara o ângulo para que esse “retrato” desnude aquilo velado ou invisibilizado por tantos mecanismos.
Depois de passar esses últimos tempos discutindo a união civil entre os homossexuais, talvez o brasileiro ache-se avançadinho. Mas é melhor se debruçar sobre “as imagens” dessa cena para entender o quanto se tem ainda por fazer. Ao mesmo tempo, percebe-se que o Brasil caminhou bastante em direção a esse lugar que se quer desde a sua construção de nação: um país diverso.
Os textos detêm-se sobre os temas que já conhecemos – homofobia, desejo reprimido, discriminação, comportamentos gays - e outros ainda pouco discutidos – as cirurgias para mudança de sexo, a situação dos trans e dos intersexos, as leis que regulam práticas sobre o corpo.
Os trans, ainda pouco inseridos nas discussões, são tratados em alguns dos artigos, como o de Berenice Bento, autora do livro “A reinvenção do corpo”. No artigo presente no livro, ela aborda a identidade legal de gênero, destacando a problemática entre os travestis e os transexuais. Os conflitos entre situação “cromossomática” do corpo, genitália, identidade de gênero, performance e ajuste ao nome legal são imensos e as conseqüências são das mais subjetivas às trágicas física e socialmente.
Artigos sobre cultura e representações revelam que a homofobia costuma ser “plantada” até mesmo quando se pensa que há uma abertura e uma boa intenção por parte dos que apresentam gays em seus produtos. Leandro Colling discute isso em “A representação da homossexualidade na telenovela Duas caras”, onde analisa as personagens gays desmontando os estereótipos e demonstrando criticamente as artimanhas da heteronormatização. Do que adiante ter um gay na novela se esse gay não tem desejo, não beija, não casa? Acaso existe amor sem corpo?
No artigo “Corpo e fotografia em Erwin Olaf” Wilton Garcia analisa aspectos subjetivos da homocultura a partir da série fotográfica “Fashiom victms”, destacando a relação do corpo exposto e explorado como mercadoria e os desejos projetados por construções simbólicas prévias.
A literatura e o teatro são abordados em vários artigos que analisam as personagens e as construções estéticas que compõem as representações. Há desde textos sobre uma intencionalidade queer na obra até aqueles considerados principalmente por sua autoria, como dos de Trevisan ou Caio Fernando Abreu. Mas a maioria dessa literatura, como mostram vários textos ali, traz o homossexual como um suspeito: as personagens ambíguas, sem clareza de sexo, com algo oculto.
“Retratos do Brasil Homossexual” faz-nos pensar nos desafios identitários contemporâneos. No livro, o direito e a medicina fazem coro com a literatura, o teatro, o cinema para deixar exposto o tanto que esse Brasil moderninho precisa ainda caminhar. É necessário, verdadeiramente, abrir as cabeças, e as pesquisas ali, sérias e pertinentes, devem ajudar na compreensão intelectual e política desse tema caro. Que essa diversidade saia daquelas páginas e se espalhe por nossas vidas. Com fotos e flashes para dar novos “retratos”.
sexta-feira, 6 de maio de 2011
http://www.ufba.br/noticias/milena-britto-apresenta-palesta-no-mam-bahia
Milena Britto apresenta palesta no MAM Bahia
Arte Contemporânea na Bienal é o tema
A professora Milena Britto, do Instituto de Letras da UFBA, estará no Museu de Arte Moderna (MAM BA) na quarta-feira, dia 11 de maio, às 15:00 ministrando conferência sobre Poética e Arte Contemporânea na Programação da XXIX Bienal de São Paulo - Obras selecionadas.
Mais informações no site do MAM: http://www.mam.ba.gov.br
Arte Contemporânea na Bienal é o tema
A professora Milena Britto, do Instituto de Letras da UFBA, estará no Museu de Arte Moderna (MAM BA) na quarta-feira, dia 11 de maio, às 15:00 ministrando conferência sobre Poética e Arte Contemporânea na Programação da XXIX Bienal de São Paulo - Obras selecionadas.
Mais informações no site do MAM: http://www.mam.ba.gov.br
sábado, 23 de abril de 2011
Quando esse olho vê: corpo, guerra, dor e erotismo no espetáculo “Fricção”
publicado em 22/04/2011
A tarde, caderno 2+
Milena Britto – Professora adjunta da Universidade Federal da Bahia
O espetáculo “Fricção”, concebido e performatizado pela coreógrafa e dançarina Isaura Tupiniquim, traz à discussão os corpos tensionados por forças trágicas e uma condição da platéia: o voyeurismo.
Com o corpo sendo a passagem de tudo, a técnica de Isaura está ali, aprimorada pela sua trajetória no balé e dança moderna, mas as experiências que deixam o corpo em “estados de” são o que tornam os seus movimentos efetivos, viscerais.
O aspecto conceitual - desenvolvido junto ao filósofo Washington Drummond- revela a profundidade da performer: as referências para esse corpo tensionado em camadas históricas estariam da filosofia à midia; com entradas marcadas pelo erotismo de Bataille, pelos registros de guerras, por uma certa plástica hitleriana, pelo dadaísmo da banda alemã Einstürzende Neubauten, o neosurrealismo de um filme como Eraserhead, de David Lynch e, no centro de tudo, a estética “tecnológica” das máquinas desse tempo de guerras.
Há beleza em seus movimentos de homem-máquina, em seu balé sutil, em seu arquear falsamente desengonçado, o seu gênero que se indefine e se subjetiva ao mesmo tempo. Há dor, solidão, angústia, surpresa, medo.
A iluminação é assinada pelo design de luz Márcio Nonato, artista que tem uma trajetória junto ao grupo pluriartístico Dimenti. Márcio acentua os sentimentos do corpo em foco captando detalhes e deixando-os suspensos, próximos à platéia; por outro lado, desde fora, o corpo em cena e os movimentos agigantam-se.
O voyuerismo selvagem vai sendo atacado e, ao mesmo tempo, recuperado como parte de um processo criativo. O dispositivo de espionar é parte de uma maquiavélica relação entre os sujeitos.
A perversão disso é o que definiria a condição “humana” ou “desumana” do corpo especulado. Especialmente aquele em meio a guerras; as de hoje, brutalmente bélicas ou invisíveis, e, mais atrás, o que aconteceu nos campos de concentração, as marchas espetaculares de exércitos, a dança dos canhões, o balé dos soldados, o sexo desprezado e pervertido, as violações e profanações do corpo, o sangue – ou o leite - derramado em nome da paz: todas as guerras que estão em nossa memória coletiva, toda a versação institucionalizada da História da Moral.
O cenário é mínimo. O figurino tem força nas “próteses” desenhadas por Gaio Matos. O fetiche, o uniforme, a máquina são signos elaborados com pouco, num grande acerto do artista.
A ambientação sonora, operada pela Dj Lívia Losd, joga-nos nas geografias desérticas dos campos de guerras, das prisões, no silêncio espantoso de corpos que desaparecem e ressurgem. Agudamente administra os sentimentos da performer através de uma combinação de efeito musical que exaspera a platéia e conduz os movimentos ajustando-os aos sentidos.
Com a base na música conceitual da banda Einstürzende Neubauten, os efeitos criados são sempre únicos, aventando-se em cada espetáculo outra possibilidade de dizer o mesmo. Os vidros, os metais, as correntes que se arrastam, o eco de batidas secas ou desordenadas, a ópera, o silêncio... sob a música, corpo e mente são prisioneiros da experiência, não sem resistência. Estamos friccionando e friccionados e a Dj capta bem esse processo no palco e fora dele.
As transições de cenas são também de sentimento e de experiência. O corpo pode ser máquina, mas ele vai se descobrir humano e outra vez se converter em máquina. Camadas de processos históricos.
Isaura Tupiniquim traz para a arte contemporânea da terra diferença com profundidade. Arrisca bastante, aliás, o risco tem sido a sua marca nas performances assinadas por ela, que pesquisa o corpo em seus entraves contemporâneos, nessas tensões onipresentes em nosso tempo. Ela recusa-se à paz e à beleza contemplativa, exaspera-se, convulsiona-se em cena. Ela transita nos depósitos de restos de corpos modificados pela história dos conflitos, metáfora para aquilo que restou de nosso sonho de progresso.
Alguns poucos momentos saíram do eixo, em transições muito longas, uma marca do espetáculo. Algumas vezes, um movimento transicional tarda muito e se repete, retirando um pouco aquilo que seria parte da mesma história: a surpresa. Um corpo pode ser transformado também de maneira fulminante, como um braço que se vai com uma bomba ou um orgasmo que faz o rosto retorcer-se em segundos.Por outro lado, alguns momentos desses são a jóia da cena.
Irônica, a artista concede um momento de beleza plástica mergulhada em audácia: compõe com fragmentos de sentido, iluminação e forma, uma imagem viva, um quadro Batailliano - aliás, a “História do Olho” está presente numa referência plástica na cena final do leite. O espetáculo tem nos dois “finais” um ápice contraditório: enquanto uma imagem viva de seu corpo se ergue pelo sentido da grande ironia, um derrière virado à platéia nos largos segundos que a iluminação eterniza, o ato rege a liberdade daquele ser recém autônomo; e, para encerrar o triunfo de ter deixado o expectador preso até ali, de presente para a platéia uma prova de seu próprio veneno, imagens trágicas, fechando o ciclo daquele acordo: o voyeur que invade a privacidade, que consome as guerras, as cenas midiáticas das tragédias é o mesmo que espiona feliz e excitado o sexo do outro pela fechadura. Perversão na dor e no erotismo. Bom espetáculo!
Controle remoto e Cyberfuturo
Milena Britto – Professora do Instituto de Letras da Ufba
Há alguns anos, Lolita Pille chocava os leitores com seu romance “Hell – Paris 75016”, no qual expunha uma juventude parisiense fútil, existindo apenas para o sexo, as drogas e o consumo de marcas luxuosas. O livro virou filme e a autora, então muito jovem, ficou bastante conhecida internacionalmente. Recentemente, Lolita Pille deu uma virada de estilo e chegou com uma espécie de thriller que envereda pelo estilo cyberpunk, o romance “Cidade da penumbra”.
O que podia ser interessante no livro termina por fragilizá-lo: as muitas referências e retomadas de clássicos da literatura noir, cyberpunk e futurista terminam por dificultar o acompanhamento da história, a qual situa-se num tempo muito além do nosso já tecnológico “agora”.
Num futuro próximo, a “hiperdemocracia” Clear-World é o único poder. O céu escureceu, os gases poluentes não deixam passar a luz solar e os cidadãos são obrigados a viver da luz artificial projetada com recursos tecnológicos para imitar as mudanças do dia. Assim, dia e noite são convenções que - como diz uma personagem do romance - continuam atuando no cérebro humano: ainda que a noite não exista, é naquele artificial momento que os sórdidos desejos e ações saem à tona.
Há situações críticas num mundo onde a realidade artificial é levada ao extremo: juventude e beleza não são direitos, são deveres e caso alguém recuse a regra é “deportado” para áreas fora da cidade. Ali juntam-se os párias, os feios, os ineptos.
O suicídio é proibido e “monitorado” por aparatos tecnológicos, como um “Rastreador”, gerenciado pelo órgão “Preventiva Suicídio”, uma espécie de polícia secreta. É nesse serviço que trabalha Syd Paradine, um policial alcoólatra e taciturno, que percebe todo o jogo e que vive amargurado por sentir-se impotente naquela realidade aparentemente perfeita.
É essa personagem que vai começar uma investigação para evidenciar o que está por trás do suicídio do obeso Parker. Aliás, as primeiras páginas, narradas pelo obeso suicida, são as melhores do livro. Escritas com apuro literário e uma cáustica e crua sinceridade, fazem o leitor navegar numa espécie de limbo à espera da salvação.
É impossível não se debruçar sobre as muitas referências que Lolita usa para construir “Cidade da Penumbra”: o céu negro é uma reminiscência aos irmãos Wachowski e a Alex Proyas (há ali Matrix, Dark City); a felicidade obrigatória está no RPG Paranóia; os párias que ficam fora da cidade vão lembrar “Fuga de Nova York” de John Carpenter. Há ainda referências a clássicos da ficção científica como Adous Huxley, William Gibson (fundador do Ciberpunk) e outros.
É impossível não ter o de javu. A autora recupera bem as imagens; a descrição é bem detalhada do mundo onde o “banco dos mortos” é pior do que a realidade, as drogas são legais e anestésicos para a guerra e as crianças menores de 12 anos podem ser compradas e usadas como bibelôs decorativos ou brinquedos sexuais humanos. Nestas páginas é que a escrita de Pille é mais elaborada, atraindo o leitor, apesar do uso de um vocabulário trash desnecessariamente jogado aqui e ali que não funciona bem.
À medida que a história avança, contudo, fica visível que Lolita Pille não sabe para onde ir. O suicídio de Colin Parker se perde na história, não mais sendo retomadas as primeiras páginas do livro.
As personagens, em sua maioria, são sem consistência e florescem a cada página. Há superabundância e a escrita falha pelo acúmulo de metáforas grotescas que deixam o texto, no mínimo, confuso.
Apesar da tentativa e de momentos muito interessantes no romance, Pille não consegue fazer “Cidade da Penumbra” sustentar-se em sua própria estrutura. Ela, entretanto, consegue, e bem, plantar no leitor uma certa suspeita desse futuro que se aproxima.
Tradução Julio Bandeira/Intrínseca/304 páginas/R$29,90.
Há alguns anos, Lolita Pille chocava os leitores com seu romance “Hell – Paris 75016”, no qual expunha uma juventude parisiense fútil, existindo apenas para o sexo, as drogas e o consumo de marcas luxuosas. O livro virou filme e a autora, então muito jovem, ficou bastante conhecida internacionalmente. Recentemente, Lolita Pille deu uma virada de estilo e chegou com uma espécie de thriller que envereda pelo estilo cyberpunk, o romance “Cidade da penumbra”.
O que podia ser interessante no livro termina por fragilizá-lo: as muitas referências e retomadas de clássicos da literatura noir, cyberpunk e futurista terminam por dificultar o acompanhamento da história, a qual situa-se num tempo muito além do nosso já tecnológico “agora”.
Num futuro próximo, a “hiperdemocracia” Clear-World é o único poder. O céu escureceu, os gases poluentes não deixam passar a luz solar e os cidadãos são obrigados a viver da luz artificial projetada com recursos tecnológicos para imitar as mudanças do dia. Assim, dia e noite são convenções que - como diz uma personagem do romance - continuam atuando no cérebro humano: ainda que a noite não exista, é naquele artificial momento que os sórdidos desejos e ações saem à tona.
Há situações críticas num mundo onde a realidade artificial é levada ao extremo: juventude e beleza não são direitos, são deveres e caso alguém recuse a regra é “deportado” para áreas fora da cidade. Ali juntam-se os párias, os feios, os ineptos.
O suicídio é proibido e “monitorado” por aparatos tecnológicos, como um “Rastreador”, gerenciado pelo órgão “Preventiva Suicídio”, uma espécie de polícia secreta. É nesse serviço que trabalha Syd Paradine, um policial alcoólatra e taciturno, que percebe todo o jogo e que vive amargurado por sentir-se impotente naquela realidade aparentemente perfeita.
É essa personagem que vai começar uma investigação para evidenciar o que está por trás do suicídio do obeso Parker. Aliás, as primeiras páginas, narradas pelo obeso suicida, são as melhores do livro. Escritas com apuro literário e uma cáustica e crua sinceridade, fazem o leitor navegar numa espécie de limbo à espera da salvação.
É impossível não se debruçar sobre as muitas referências que Lolita usa para construir “Cidade da Penumbra”: o céu negro é uma reminiscência aos irmãos Wachowski e a Alex Proyas (há ali Matrix, Dark City); a felicidade obrigatória está no RPG Paranóia; os párias que ficam fora da cidade vão lembrar “Fuga de Nova York” de John Carpenter. Há ainda referências a clássicos da ficção científica como Adous Huxley, William Gibson (fundador do Ciberpunk) e outros.
É impossível não ter o de javu. A autora recupera bem as imagens; a descrição é bem detalhada do mundo onde o “banco dos mortos” é pior do que a realidade, as drogas são legais e anestésicos para a guerra e as crianças menores de 12 anos podem ser compradas e usadas como bibelôs decorativos ou brinquedos sexuais humanos. Nestas páginas é que a escrita de Pille é mais elaborada, atraindo o leitor, apesar do uso de um vocabulário trash desnecessariamente jogado aqui e ali que não funciona bem.
À medida que a história avança, contudo, fica visível que Lolita Pille não sabe para onde ir. O suicídio de Colin Parker se perde na história, não mais sendo retomadas as primeiras páginas do livro.
As personagens, em sua maioria, são sem consistência e florescem a cada página. Há superabundância e a escrita falha pelo acúmulo de metáforas grotescas que deixam o texto, no mínimo, confuso.
Apesar da tentativa e de momentos muito interessantes no romance, Pille não consegue fazer “Cidade da Penumbra” sustentar-se em sua própria estrutura. Ela, entretanto, consegue, e bem, plantar no leitor uma certa suspeita desse futuro que se aproxima.
Tradução Julio Bandeira/Intrínseca/304 páginas/R$29,90.
O amor no “lado B” da cidade
Publicado no A tarde, caderno 2+
Milena Britto – Professora do Instituto de Letras da Ufba
A literatura beat tem influenciado muitos escritores, particularmente, àqueles que enveredam por uma contestação da ordem burguesa a partir da agressividade da linguagem, dos temas abjetos, apodrecidos, escusos. Dentre os chamados “beats”, Charles Bukowski – que segundo alguns críticos não deveria estar entre os beats – é o mais ácido, o intransigente com relação à linguagem, ao estilo, aos temas. Impossível não pensar nele quando lemos algo duro, colhido dessa realidade sórdida comum a todas as épocas, países, cidades: a realidade dos becos, vielas, bares, prostíbulos.
Ao cair nas minhas mãos o livro de contos “Elas etc” assinado simplesmente por Tico, confesso que tive minhas dúvidas se iria gostar, apesar de ter uma apresentação assinada pelo Ferréz, que também foi o primeiro a publicar Tico na coletânea “Literatura marginal” em 2004. Mas isso tudo – minha desconfiança e suspeita – durou até eu sentar-me a ler o livro. Tinha algo de Bukowski ali, mas tinha, sem dúvida, uma pegada própria também.
Logo depois de passear pelas primeiras páginas, “desconfiei” que sairia dele abalada de alguma maneira. Para iniciar aqui uma conversa breve sobre literatura – pensando no tal Tico – tento não me deixar cair na armadilha de quem é o autor, tratando de ler a obra como algo independente.
Mas isso não é de todo possível. Não apenas por nossa tradição de autoridade da escrita, mas também porque a palavra pode ser assumidamente política (sim, podemos ir para Benjamin, Barthes, Foucault, Bakhtin, sair da análise do discurso, da estética literária e até da psicanálise) mas uma coisa é certa: no fundo queremos saber quem foi que escreveu aquilo e se possível até ver uma foto do sujeito. Então, sobre Tico, tendo ele sido descrito como anarquista, não foi possível livrar-me da informação e me via entre uma página e outra pensando nisso. Entre anarquia e favelas, esse Tico dá umas pauladas das boas, deixando arder as palavras sob nossos olhos, mas também deixando um rastro de delicadeza que comove.
Não, o leitor não tem a sensação de estar diante da Tv com os programas sensacionalistas sobre favelas e bandidos. É como se, ao contrário, todas as armadilhas que nos afastam dessa realidade comovente fossem arrancadas: fica apenas o leitor e aquele mundo escondido, temido por todos.
Os contos de “Elas etc” tem o protagonismo dado às mulheres, mas tem muito mais: um universo de escritores, referências literárias colocadas como pistas do imaginário poético do autor, cenários densos e, sobretudo, tem uma ligação intensa com a realidade das periferias urbanas. As histórias são construídas colocando-se as personagens num frágil fio que pende entre a vida e a morte, já que são partes desse “lado B” da cidade. Os contos são dos que marcam o leitor tanto pela narrativa precisa quanto pela tenacidade do envolvimento de quem lê com os sentimentos das personagens.
Há histórias de amor e morte em barracos nas quebradas. Em um conto, a droga, o cigarro, o sexo, o vazio de esperanças misturado à persistência de sentidos, deixam a sensação ambígua da impossibilidade de se evitar as tragédias e ao mesmo tempo a luta absurda pela emergência da vida. Depois do coito, no conto “Paixão explosiva”, o casal conversa, o homem fala de Byron, a mulher, até então quase anônima para ele, mostra a ternura e a curiosidade com a vida. O cenário é desmantelado, feio como se imagina um beco qualquer, um barraco qualquer, mas as imagens chegam a ser poéticas. Nada adianta, contudo: a tragédia impera mesmo sem balas e perseguição da polícia: a explosão do barraco pelo cigarro aceso da mulher dá um desfecho onde a surpresa é a “surpresa” e a dor do homem: há mais vida e mais sentimento do que se imagina por trás desses mundos outros.
“Álbum de retratos” é diferente, vertiginoso, ritmo frenético com uma espécie de transposição catártica. Um barraco, onde uma quadrilha se recupera de um assalto, é invadido por policiais que acabam exterminando o grupo. Duas personagens sobrevivem e sente-se a dor do bandido desesperado porque vê o álbum de sua família inexistente ser queimado: a fantasia de uma foto de uma família feliz importava mais do que as jóias roubadas e foi por isso apenas que houve assassinato das vítimas, o roubo era da ilusão da família e não do dinheiro.
A família volta outra vez no conto “A bela que abala libido e o almocreve”, no qual o sujeito recém saído da prisão assiste a morte de sua mãe prostituta pela Tv, atingida por uma bala perdida saída da arma de sua amante, uma policial. Ironia maior: ele havia tentado, sem saber de quem se tratava, dar à velha prostituta um buquê de flores. São muitos os contos, alguns muito mais interessantes do que outros, sobretudo com relação à narrativa e à linguagem, que oscilam.
A linguagem dos contos é peculiar: coloquial, explícita, direta, imperfeita, mas, também, com vestígios de erudição, vocabulário rebuscado que aparece aqui e ali de propósito. Eu achava, a princípio, que isso quebrava a força apelativa da representação daquela realidade, mas acaba sendo tanto um ponto de ironia como uma peleja com absurdos cruzamentos, com essa malha de tensão na que se vive hoje, os limites ou o limiar de pertencer ou não a um mundo.
Mas nada ali enfraquece o valor da obra, a qualidade da escrita. É “literatura A” mostrando o “lado B”. Tem vida daquele lado também. E o escancarado de lá é mais terno do que se supõe o lado de cá. Literatura dissidente marcando um tempo, uma geografia, uma política.
Editora Edições inteligentes/111p/$20,00
Milena Britto – Professora do Instituto de Letras da Ufba
A literatura beat tem influenciado muitos escritores, particularmente, àqueles que enveredam por uma contestação da ordem burguesa a partir da agressividade da linguagem, dos temas abjetos, apodrecidos, escusos. Dentre os chamados “beats”, Charles Bukowski – que segundo alguns críticos não deveria estar entre os beats – é o mais ácido, o intransigente com relação à linguagem, ao estilo, aos temas. Impossível não pensar nele quando lemos algo duro, colhido dessa realidade sórdida comum a todas as épocas, países, cidades: a realidade dos becos, vielas, bares, prostíbulos.
Ao cair nas minhas mãos o livro de contos “Elas etc” assinado simplesmente por Tico, confesso que tive minhas dúvidas se iria gostar, apesar de ter uma apresentação assinada pelo Ferréz, que também foi o primeiro a publicar Tico na coletânea “Literatura marginal” em 2004. Mas isso tudo – minha desconfiança e suspeita – durou até eu sentar-me a ler o livro. Tinha algo de Bukowski ali, mas tinha, sem dúvida, uma pegada própria também.
Logo depois de passear pelas primeiras páginas, “desconfiei” que sairia dele abalada de alguma maneira. Para iniciar aqui uma conversa breve sobre literatura – pensando no tal Tico – tento não me deixar cair na armadilha de quem é o autor, tratando de ler a obra como algo independente.
Mas isso não é de todo possível. Não apenas por nossa tradição de autoridade da escrita, mas também porque a palavra pode ser assumidamente política (sim, podemos ir para Benjamin, Barthes, Foucault, Bakhtin, sair da análise do discurso, da estética literária e até da psicanálise) mas uma coisa é certa: no fundo queremos saber quem foi que escreveu aquilo e se possível até ver uma foto do sujeito. Então, sobre Tico, tendo ele sido descrito como anarquista, não foi possível livrar-me da informação e me via entre uma página e outra pensando nisso. Entre anarquia e favelas, esse Tico dá umas pauladas das boas, deixando arder as palavras sob nossos olhos, mas também deixando um rastro de delicadeza que comove.
Não, o leitor não tem a sensação de estar diante da Tv com os programas sensacionalistas sobre favelas e bandidos. É como se, ao contrário, todas as armadilhas que nos afastam dessa realidade comovente fossem arrancadas: fica apenas o leitor e aquele mundo escondido, temido por todos.
Os contos de “Elas etc” tem o protagonismo dado às mulheres, mas tem muito mais: um universo de escritores, referências literárias colocadas como pistas do imaginário poético do autor, cenários densos e, sobretudo, tem uma ligação intensa com a realidade das periferias urbanas. As histórias são construídas colocando-se as personagens num frágil fio que pende entre a vida e a morte, já que são partes desse “lado B” da cidade. Os contos são dos que marcam o leitor tanto pela narrativa precisa quanto pela tenacidade do envolvimento de quem lê com os sentimentos das personagens.
Há histórias de amor e morte em barracos nas quebradas. Em um conto, a droga, o cigarro, o sexo, o vazio de esperanças misturado à persistência de sentidos, deixam a sensação ambígua da impossibilidade de se evitar as tragédias e ao mesmo tempo a luta absurda pela emergência da vida. Depois do coito, no conto “Paixão explosiva”, o casal conversa, o homem fala de Byron, a mulher, até então quase anônima para ele, mostra a ternura e a curiosidade com a vida. O cenário é desmantelado, feio como se imagina um beco qualquer, um barraco qualquer, mas as imagens chegam a ser poéticas. Nada adianta, contudo: a tragédia impera mesmo sem balas e perseguição da polícia: a explosão do barraco pelo cigarro aceso da mulher dá um desfecho onde a surpresa é a “surpresa” e a dor do homem: há mais vida e mais sentimento do que se imagina por trás desses mundos outros.
“Álbum de retratos” é diferente, vertiginoso, ritmo frenético com uma espécie de transposição catártica. Um barraco, onde uma quadrilha se recupera de um assalto, é invadido por policiais que acabam exterminando o grupo. Duas personagens sobrevivem e sente-se a dor do bandido desesperado porque vê o álbum de sua família inexistente ser queimado: a fantasia de uma foto de uma família feliz importava mais do que as jóias roubadas e foi por isso apenas que houve assassinato das vítimas, o roubo era da ilusão da família e não do dinheiro.
A família volta outra vez no conto “A bela que abala libido e o almocreve”, no qual o sujeito recém saído da prisão assiste a morte de sua mãe prostituta pela Tv, atingida por uma bala perdida saída da arma de sua amante, uma policial. Ironia maior: ele havia tentado, sem saber de quem se tratava, dar à velha prostituta um buquê de flores. São muitos os contos, alguns muito mais interessantes do que outros, sobretudo com relação à narrativa e à linguagem, que oscilam.
A linguagem dos contos é peculiar: coloquial, explícita, direta, imperfeita, mas, também, com vestígios de erudição, vocabulário rebuscado que aparece aqui e ali de propósito. Eu achava, a princípio, que isso quebrava a força apelativa da representação daquela realidade, mas acaba sendo tanto um ponto de ironia como uma peleja com absurdos cruzamentos, com essa malha de tensão na que se vive hoje, os limites ou o limiar de pertencer ou não a um mundo.
Mas nada ali enfraquece o valor da obra, a qualidade da escrita. É “literatura A” mostrando o “lado B”. Tem vida daquele lado também. E o escancarado de lá é mais terno do que se supõe o lado de cá. Literatura dissidente marcando um tempo, uma geografia, uma política.
Editora Edições inteligentes/111p/$20,00
Mecanismos internos da escrita
Publicado no A tarde
O escritor J.M Coetzee, que nasceu na África do Sul e tornou-se cidadão austríaco, já ganhou um Nobel da literatura e muitos outros prêmios importantes; porém, a despeito disso, sua fama entre os intelectuais vem da forma como encara o seu papel de escritor e o lugar da literatura no mundo, no curso da história política e em sua condição de arte.
O seu livro de ensaios “Mecanismos internos” revela uma posição definida por si e para si como a de um escritor “consequente da leitura”. Para ele, a escrita só é possível porque ele lê; essa é a única forma para ele escrever e, mais ainda, a única que possibilita que a escrita seja algo próprio, algo em si mesma, já que ela resulta do exercício de leitura e de seu profundo entendimento.
A sua ficção é produto das reflexões feitas a partir de escritores ocidentais e essa escrita o põe em diálogo com o canônico e o não canônico de seu tempo, respeitando o lugar da “memória literária”, da tradição, do repertório.
Esse “ler” significa estabelecer forças e valores para determinados autores, considerando os mecanismos internos de suas produções, mas sem deixar de fora o lugar do sujeito histórico que é o próprio autor. Sendo ele próprio um escritor que localiza boa parte de sua obra a partir de um país pós-colonial e subdesenvolvido, esse aspecto adquire ainda mais relevância em seu lugar de crítico.
São muitas as vezes em que ele resgata o autor para ajustar a leitura que faz da obra. Quando analisa narradores na ficção ocidental, como no ensaio sobre Sebald, por exemplo, o faz destacando na obra a intersecção e a dimensão do sujeito histórico.
Nos vinte e um ensaios do livro, Coetezee exercita o seu olhar a partir das questões que permearam os textos escolhidos para resenhar e defende uma abordagem política vinculada às questões estéticas.
É assim que J.M Coetzee vai discutir escritores cujas obras circularam ou produziram-se a partir de contextos político-históricos, por exemplo o Holocausto, como se vê no ensaio intitulado “Paul Celan e seus tradutores” – nesse ensaio, as questões anti-semitistas são problematizadas nas relações entre tradutores e autores, bem como vai dimensionar o lugar de uma nova proposta estética, o que vemos quando ele discute Italo Svevo. Esse ensaio, em particular, serve para ver de que maneira o excentrismo do autor italiano e a sua “forma” moderna repercurtem na própria estrutura da produção ficcional de Coetzee, sendo mesmo uma espécie de mecanismo para o seu projeto geral de escritor.
Um papel ético e estético importante que, segundo ele, a literatura desempenha no nosso tempo é colocar a condição humana no centro da discussão. Não é à toa que ele dedica grande espaço a Italo Svevo, Sándor Márai e Walter Benjamin.
Ao abordar cada obra que se propõe a ler, Coetzee cerca-se de leituras que vão localizando, discutindo e questionando desde as diferentes razões pleiteadas por cada autor para justificar determinadas posições, até às escapadas que a psicanálise pode explicar - ou aponta o próprio exercício psicoanalítico dentro da obra. É assim no ensaio sobre Robert Walser cuja biografia inserida no ensaio, juntamente com o aspecto sexual destacado da personagem, leva-o ao percurso interno de construção do texto desse autor que, mesmo sem ser daqueles politicamente envolvidos num propósito, provoca uma ruptura e uma reconfiguração de direção a partir do lugar do desejo – ou, melhor dizendo, do desejo da personagem.
Depois de ler a obra ficcional de J.M Coetzee, o leitor talvez não espere dele um papel de resenhista ideal, dado o aspecto oblíquo de sua obra, mas é justamente o contrário: o lugar de crítico e ensaísta traz um texto absorvente e agudo. Esse “outro” texto, produto da razão e da erudição do autor, bem como de sua atenção ímpar à condição humana nos tempos de conflitos, guerras e desequilíbrios, revela um escritor que vincula a sua obra a sua condição de leitor do mundo, à condição de homem e de sujeito numa história em curso.
Mecanismos internos/trad. Sergio Flaksman/359p/ R$39,00
O escritor J.M Coetzee, que nasceu na África do Sul e tornou-se cidadão austríaco, já ganhou um Nobel da literatura e muitos outros prêmios importantes; porém, a despeito disso, sua fama entre os intelectuais vem da forma como encara o seu papel de escritor e o lugar da literatura no mundo, no curso da história política e em sua condição de arte.
O seu livro de ensaios “Mecanismos internos” revela uma posição definida por si e para si como a de um escritor “consequente da leitura”. Para ele, a escrita só é possível porque ele lê; essa é a única forma para ele escrever e, mais ainda, a única que possibilita que a escrita seja algo próprio, algo em si mesma, já que ela resulta do exercício de leitura e de seu profundo entendimento.
A sua ficção é produto das reflexões feitas a partir de escritores ocidentais e essa escrita o põe em diálogo com o canônico e o não canônico de seu tempo, respeitando o lugar da “memória literária”, da tradição, do repertório.
Esse “ler” significa estabelecer forças e valores para determinados autores, considerando os mecanismos internos de suas produções, mas sem deixar de fora o lugar do sujeito histórico que é o próprio autor. Sendo ele próprio um escritor que localiza boa parte de sua obra a partir de um país pós-colonial e subdesenvolvido, esse aspecto adquire ainda mais relevância em seu lugar de crítico.
São muitas as vezes em que ele resgata o autor para ajustar a leitura que faz da obra. Quando analisa narradores na ficção ocidental, como no ensaio sobre Sebald, por exemplo, o faz destacando na obra a intersecção e a dimensão do sujeito histórico.
Nos vinte e um ensaios do livro, Coetezee exercita o seu olhar a partir das questões que permearam os textos escolhidos para resenhar e defende uma abordagem política vinculada às questões estéticas.
É assim que J.M Coetzee vai discutir escritores cujas obras circularam ou produziram-se a partir de contextos político-históricos, por exemplo o Holocausto, como se vê no ensaio intitulado “Paul Celan e seus tradutores” – nesse ensaio, as questões anti-semitistas são problematizadas nas relações entre tradutores e autores, bem como vai dimensionar o lugar de uma nova proposta estética, o que vemos quando ele discute Italo Svevo. Esse ensaio, em particular, serve para ver de que maneira o excentrismo do autor italiano e a sua “forma” moderna repercurtem na própria estrutura da produção ficcional de Coetzee, sendo mesmo uma espécie de mecanismo para o seu projeto geral de escritor.
Um papel ético e estético importante que, segundo ele, a literatura desempenha no nosso tempo é colocar a condição humana no centro da discussão. Não é à toa que ele dedica grande espaço a Italo Svevo, Sándor Márai e Walter Benjamin.
Ao abordar cada obra que se propõe a ler, Coetzee cerca-se de leituras que vão localizando, discutindo e questionando desde as diferentes razões pleiteadas por cada autor para justificar determinadas posições, até às escapadas que a psicanálise pode explicar - ou aponta o próprio exercício psicoanalítico dentro da obra. É assim no ensaio sobre Robert Walser cuja biografia inserida no ensaio, juntamente com o aspecto sexual destacado da personagem, leva-o ao percurso interno de construção do texto desse autor que, mesmo sem ser daqueles politicamente envolvidos num propósito, provoca uma ruptura e uma reconfiguração de direção a partir do lugar do desejo – ou, melhor dizendo, do desejo da personagem.
Depois de ler a obra ficcional de J.M Coetzee, o leitor talvez não espere dele um papel de resenhista ideal, dado o aspecto oblíquo de sua obra, mas é justamente o contrário: o lugar de crítico e ensaísta traz um texto absorvente e agudo. Esse “outro” texto, produto da razão e da erudição do autor, bem como de sua atenção ímpar à condição humana nos tempos de conflitos, guerras e desequilíbrios, revela um escritor que vincula a sua obra a sua condição de leitor do mundo, à condição de homem e de sujeito numa história em curso.
Mecanismos internos/trad. Sergio Flaksman/359p/ R$39,00
Enquanto dura um Jazz
Milena Britto – Professora do Instituto de Letras da Ufba
millenabritto@hotmail.com
Foi invocando os ecos da "geração perdida"que me inclinei a ler o premiado “Alabama Song”, do francês Gilles Leroy.
Das sombrias às mais ternas experiências de se escutar um bom jazz ou se ler um bom livro, só ao final se pode saber o saldo do ato. Neste caso, entrar na intimidade de Scott Fitzgerald, para o bem e para o mal, não possibilita ao leitor o gosto prazenteiro do bis.
Há quem pense que tentar ultrapassar os limites que separam a biografia da ficção é um exercício arriscado. A questão se complica ainda mais quando, como é o caso, a história fez do personagem mito e símbolo de toda uma época. É isso o que acontece com “Alabama Song”, romance no qual Leroy recria a figura de Zelda Sayre e sua atormentada existência junto àquele que foi seu marido, o romancista americano Francis Scott Fitzgerald.
Pertencentes à chamada “geração perdida” – termo cunhado por Gertrude Stein para referir-se aos jovens escritores norte-americanos nascidos no período de entreguerras – Zelda Sayre e Scott chegaram a converter-se em um dos casais mais famosos de Nova York.
“Alabama Song” é um relato cru, escrito em primeira pessoa, no qual Zelda – na idade de quarenta anos e reclusa em um hospital psiquiátrico – rememora seu passado e sua mal sucedida vida conjugal junto ao escritor desde a sua juventude.
No livro, Gilles Leroy desenha Zelda como uma mulher de caráter frágil, mas independente que, além de ser dotada de um grande talento para a escrita e a pintura, viveu, tanto no âmbito pessoal quanto no artístico, submetida ao cruel autoritarismo de seu marido, ciumento de sua criatividade e de seu temperamento apaixonado e vivo, distanciado das convenções da época.
Através da voz desgarrada de Zelda, Leroy desnuda sem pudores a figura de Scott Fitzgerald; despoja-o de seus elegantes trajes para descrever-nos um homem arrogante e degradado pelo álcool, cuja vida pessoal, segundo o romance, nem sempre soube estar a altura de seus êxitos profissionais e da imagem de refinado sedutor que projetava a seu redor.
Junto ao casal, pelas páginas do romance, desfilam outros autores com os quais Zelda e Scott mantiveram amizade, como Gertrude Stein, Hemingway (camuflado na história sob o nome de Lewis), John Dos Passos e Maxwell.
“Alabama Song” é um tratado em defesa de Zelda, no qual Leroy – em suas próprias palavras – pretende reivindicar sua figura e libertá-la dos prejuízos que, erroneamente, grande parte dos biógrafos de Scott Fitzgerald tem contribuído para difundir sobre ela. Segundo o autor, o famoso escritor não duvidou em nenhum momento de apoderar-se de alguns textos e artigos de sua mulher com a desculpa de que sob seu nome receberiam melhor acolhida, além daqueles que teria maquiavelicamente extraído dos diários e da correspondência privada de Zelda para elaborar seus romances.
Baseado em numerosos documentos disponíveis que reuniu sobre o casal, Gilles Leroy devolve a Zelda – sob a forma de um imenso monólogo a que o livro recorre do começo ao fim – o dom da palavra.
Durante a sua reclusão no hospital, Zelda se aferra a suas recordações numa tentativa desesperada de manter a lucidez e recuperar, de alguma forma, o sentimento de controle sobre a sua vida. Através da escrita, seu relato, entrelaçado aos fios dos episódios que vão aflorando livremente de sua memória – seguindo uma ordem cronológica – irá adquirindo o caráter de um doloroso ato de expiação. Ainda que pese a terrível carga emocional que acompanha muitas de suas recordações, sua voz, longe de fraquejar, amadurece e se fortalece com a dor, consciente de que só enfrentando com coragem as passagens mais obscuras de sua memória, é possível ganhar a batalha sobre a loucura e o desespero.
Com um estilo pulsante e irônico, que alterna passagens de grande sensibilidade poética com outras dominadas por um abrupto realismo – beirando até o escatológico – Leroy consegue manter o interesse e a tensão do leitor ao longo de toda a narrativa, cavando com profundidade os conflitos internos da mulher que foi musa e inspiradora do autor americano.
Sem dúvida, por muito que o romance resulte excelente, tanto em sua construção quanto no perfil que faz das personagens, através de sua leitura é inevitável se perguntar – como acontece sempre que nos deparamos com uma obra que conjuga elementos biográficos com fictícios – o que há de verdade e o que há de lenda atrás das pistas em que Leroy se baseou para construir seu romance?
De fato, depois da publicação, não foram poucos os protestos daqueles que consideram que Gilles Leroy traz em seu livro uma imagem excessivamente crítica de Fitzgerald; outras que dizem que ele foi muito longe em suas revelações, como o momento em que Lewis, alter ego de Hemingway , é flagrado em uma situação comprometedora, sobretudo pela evidência homossexual, junto a Scott.
Seja como seja, o romance, consegue deixar no leitor essa marca forte de Zelda e, sem dúvida, ao terminar a última página, como se toda a vida durasse um Jazz, há que se esquecer do “replay” e sair com Zelda – e Scott – atrás de alguma coisa perdida. Um geração perdida.
Alabama song/Record/207p.
millenabritto@hotmail.com
Foi invocando os ecos da "geração perdida"que me inclinei a ler o premiado “Alabama Song”, do francês Gilles Leroy.
Das sombrias às mais ternas experiências de se escutar um bom jazz ou se ler um bom livro, só ao final se pode saber o saldo do ato. Neste caso, entrar na intimidade de Scott Fitzgerald, para o bem e para o mal, não possibilita ao leitor o gosto prazenteiro do bis.
Há quem pense que tentar ultrapassar os limites que separam a biografia da ficção é um exercício arriscado. A questão se complica ainda mais quando, como é o caso, a história fez do personagem mito e símbolo de toda uma época. É isso o que acontece com “Alabama Song”, romance no qual Leroy recria a figura de Zelda Sayre e sua atormentada existência junto àquele que foi seu marido, o romancista americano Francis Scott Fitzgerald.
Pertencentes à chamada “geração perdida” – termo cunhado por Gertrude Stein para referir-se aos jovens escritores norte-americanos nascidos no período de entreguerras – Zelda Sayre e Scott chegaram a converter-se em um dos casais mais famosos de Nova York.
“Alabama Song” é um relato cru, escrito em primeira pessoa, no qual Zelda – na idade de quarenta anos e reclusa em um hospital psiquiátrico – rememora seu passado e sua mal sucedida vida conjugal junto ao escritor desde a sua juventude.
No livro, Gilles Leroy desenha Zelda como uma mulher de caráter frágil, mas independente que, além de ser dotada de um grande talento para a escrita e a pintura, viveu, tanto no âmbito pessoal quanto no artístico, submetida ao cruel autoritarismo de seu marido, ciumento de sua criatividade e de seu temperamento apaixonado e vivo, distanciado das convenções da época.
Através da voz desgarrada de Zelda, Leroy desnuda sem pudores a figura de Scott Fitzgerald; despoja-o de seus elegantes trajes para descrever-nos um homem arrogante e degradado pelo álcool, cuja vida pessoal, segundo o romance, nem sempre soube estar a altura de seus êxitos profissionais e da imagem de refinado sedutor que projetava a seu redor.
Junto ao casal, pelas páginas do romance, desfilam outros autores com os quais Zelda e Scott mantiveram amizade, como Gertrude Stein, Hemingway (camuflado na história sob o nome de Lewis), John Dos Passos e Maxwell.
“Alabama Song” é um tratado em defesa de Zelda, no qual Leroy – em suas próprias palavras – pretende reivindicar sua figura e libertá-la dos prejuízos que, erroneamente, grande parte dos biógrafos de Scott Fitzgerald tem contribuído para difundir sobre ela. Segundo o autor, o famoso escritor não duvidou em nenhum momento de apoderar-se de alguns textos e artigos de sua mulher com a desculpa de que sob seu nome receberiam melhor acolhida, além daqueles que teria maquiavelicamente extraído dos diários e da correspondência privada de Zelda para elaborar seus romances.
Baseado em numerosos documentos disponíveis que reuniu sobre o casal, Gilles Leroy devolve a Zelda – sob a forma de um imenso monólogo a que o livro recorre do começo ao fim – o dom da palavra.
Durante a sua reclusão no hospital, Zelda se aferra a suas recordações numa tentativa desesperada de manter a lucidez e recuperar, de alguma forma, o sentimento de controle sobre a sua vida. Através da escrita, seu relato, entrelaçado aos fios dos episódios que vão aflorando livremente de sua memória – seguindo uma ordem cronológica – irá adquirindo o caráter de um doloroso ato de expiação. Ainda que pese a terrível carga emocional que acompanha muitas de suas recordações, sua voz, longe de fraquejar, amadurece e se fortalece com a dor, consciente de que só enfrentando com coragem as passagens mais obscuras de sua memória, é possível ganhar a batalha sobre a loucura e o desespero.
Com um estilo pulsante e irônico, que alterna passagens de grande sensibilidade poética com outras dominadas por um abrupto realismo – beirando até o escatológico – Leroy consegue manter o interesse e a tensão do leitor ao longo de toda a narrativa, cavando com profundidade os conflitos internos da mulher que foi musa e inspiradora do autor americano.
Sem dúvida, por muito que o romance resulte excelente, tanto em sua construção quanto no perfil que faz das personagens, através de sua leitura é inevitável se perguntar – como acontece sempre que nos deparamos com uma obra que conjuga elementos biográficos com fictícios – o que há de verdade e o que há de lenda atrás das pistas em que Leroy se baseou para construir seu romance?
De fato, depois da publicação, não foram poucos os protestos daqueles que consideram que Gilles Leroy traz em seu livro uma imagem excessivamente crítica de Fitzgerald; outras que dizem que ele foi muito longe em suas revelações, como o momento em que Lewis, alter ego de Hemingway , é flagrado em uma situação comprometedora, sobretudo pela evidência homossexual, junto a Scott.
Seja como seja, o romance, consegue deixar no leitor essa marca forte de Zelda e, sem dúvida, ao terminar a última página, como se toda a vida durasse um Jazz, há que se esquecer do “replay” e sair com Zelda – e Scott – atrás de alguma coisa perdida. Um geração perdida.
Alabama song/Record/207p.
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